Em Kattegat, a notícia passou furiosamente de boca em boca: o rei da Escandinávia, Ragnar Lothbrok, estava morto. O agricultor que, durante os séculos VIII e IX, aglutinara tribos e condados vikings em torno da ideia da expansão (e de saques opulentos) até Inglaterra, França, Península Ibérica e norte de África tinha sucumbido à crueldade de Aelle, monarca da Nortúmbria. Os herdeiros, Björn, Ubbe, Hvitserk, Sigurd e Ivar, armaram o maior exército pagão até então conhecido e zarparam para a Grã-Bretanha para o ajuste de contas.
Cumprida a vingança, subsistiam contas entre eles por saldar, em especial, entre Ivar e a primeira mulher de Ragnar, a belíssima e destemida Lagertha, sempre tida como uma rainha de transição – ou para queimar, como nos ensinou o politiquês. Após as batalhas além-fronteiras, chegavam as soluções fratricidas. Depois do combate em solos inimigos, a guerra civil.
Vikings, a trama criada por Michael Hirst, que mescla a mitologia nórdica com inúmeros caprichos (pouco) históricos, recomeça esta quarta-feira no Canal História. Kattegat, enquanto vila-berço de guerreiros de dois metros, primitivos no traje e rudes no verbo, é mesmo do domínio da fantasia: não existe. Mas Kattegat, enquanto metáfora, é tão norueguesa quanto portuguesa. Tão bárbara quanto pós-moderna. Tão bélica quanto moral. Tão apolítica quanto social-democrata.
Está à vista de qualquer um aquilo que está a acontecer no PSD. Ou, sendo rigoroso, aquilo que o partido está a fazer a si mesmo. Nas terras de Rui Rio, soçobra a lei e escasseia a paz. Primeiro, como notou José Eduardo Martins, foi um deputado, José Silvano, que apoia a direção a ser apanhado na polémica das passwords e da ubiquidade parlamentar. O ataque fez ricochete e, logo de seguida, dois desalinhados (José Matos Rosa e Duarte Marques) foram caçados. Não é vendetta, é autofagia.
Rio, claro, é cúmplice (se não protagonista) destes confrontos: onde não se vislumbra uma estratégia política, sobra a ostracização de passistas; onde não se encontra uma ideia para reimplantar territorialmente o PSD, resta a hostilização de autarcas; onde é diminuta a capacidade de agregar e de somar gente que pense diferente, produzem-se fastidiosos ensaios sobre conspirações; onde é notória a impreparação para lidar com o escrutínio, ficam os dedos em riste contra a comunicação social.
Entretanto, o banho de ética que, do alto do seu cavalo branco, prometeu à classe política foi esquecido em banho-maria – que o digam também Elina Fraga, Salvador Malheiro ou Feliciano Barreiras Duarte.
O presidente do (ainda) maior partido da Assembleia da República, sabemos empiricamente das lides autárquicas, é obstinado e vai persistir, contra tudo e contra todos, nesta campanha de dominação do PSD. Ou será como ele quer, ou não será de todo com ele. Se não vergar o aparelho, o aparelho minguará consigo. A cama que os adversários venham a fazer-lhe será exatamente a mesma em que se virão deitar. É uma estratégia como outra qualquer. Pequenina, e danosa para o partido, mas uma estratégia.
Rio esquece-se que da mesma forma que a máquina “laranja” carece de um líder sério, credível e inquebrantável (qualidades que lhe são reconhecidas) também o líder precisa de dirigentes, deputados e militantes de base que acreditem no caminho que este lhes indique. Enquanto assim não for, o PSD não será mais que a soma de tensões e gritarias, recados e cisões, limpezas e traições – tudo questiúnculas, é evidente.
Enquanto isso, no Portugal votado ao esquecimento e à mercê da absoluta desresponsabilização, há um primeiro-ministro e um Governo em roda livre. Enquanto isso, não há Pedrógão Grande, Tancos ou Borba que “valham” aos sociais-democratas. Enquanto isso, nem um Orçamento do Estado que expõe as fragilidades e incoerências entre a maioria de esquerda serve para o PSD demonstrar que tem um projeto alternativo para o País. Enquanto isso, António Costa e Carlos César vão-se revezando no bullying ao Bloco de Esquerda e ao PCP (que de amigos de ocasião passaram a parceiros inomináveis). Enquanto isso, a São Caetano à Lapa dá-nos ares da ficcionada Kattegat.
Poupo a maçada aos que não pretendem seguir a série e enfureço os incautos que aqui chegaram, com este spoil: em Vikings, cedo ou tarde, Lagertha acaba destronada.