Não é preciso ser um analista brilhante para perceber que, caso se venha a confirmar que alguém no Executivo soube da tentativa de encobrimento do furto de Tancos por parte da Polícia Judiciária Militar (PJM), estaremos perante a mais séria crise política desta legislatura. Tanto mais que, como recentemente lembrava Paulo Rangel, não é crível que ninguém, no seu perfeito juízo, num momento em que o escrutínio sobre o caso era já intenso, tivesse desvalorizado qualquer informação recebida sobre a alegada encenação da descoberta do material militar.
É portanto absolutamente natural – diria mesmo que é saudável – que a oposição não deixe cair o caso apesar da queda do ministro da Defesa. A par das investigações criminais, o escrutínio político é, num caso desta gravidade, absolutamente fundamental.
Sucede que o apuramento da verdade nestas duas frentes – criminal e política – não é suficiente. Diria mais. A atenção mediática que a discussão no plano político naturalmente suscita está a desviar-nos do essencial. E o essencial é – convenhamos – apurar as responsabilidades militares. Tudo terá começado afinal – não nos esqueçamos – na esfera militar.
Vale a pena dar um passo atrás. Sabemos ou julgamos saber que existe uma guerra aberta entre a PJM e a PJ. Sabemos ou julgamos saber que a PJM protegeu, de alguma forma, os autores do furto. Sabemos ou julgamos saber que a GNR esteve envolvida nessa manobra. Sabemos – porque o próprio já o terá confessado – que o general Martins Pereira recebeu, há largos meses, informação relevante sobre a manobra de encenação. Sabemos que o mesmo general é hoje adjunto do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA). Sabemos, finalmente, que o ex-Chefe do Estado-Maior do Exército se demitiu do cargo por “razões pessoais” que eram, afinal, também “circunstâncias políticas”.
Ora, perante tudo isto, não será natural perguntar também quem sabia o quê dentro da instituição militar? Quem sabia da operação montada pela PJM? Quem sabia do envolvimento da GNR? Quem, de entre as mais altas chefias das Forças Armadas, sabia também da informação na posse do general Martins Pereira? Por que carga de água se demitiu, afinal, Rovisco Duarte? O que pensa o CEMGFA?
São perguntas a mais para respostas a menos. Acontece que, como cidadãos, queremos ter a certeza de que a instituição militar não é uma instituição opaca, com códigos próprios e uma cultura corporativa de encobrimento. Queremos continuar a confiar e a respeitar as Forças Armadas portuguesas. Ora, para que isso aconteça, a instituição militar não pode pretender defender-se com um ruidoso silêncio. Ao contrário do que é tradicional, o prestígio das Forças Armadas não se defende com uma cultura de respeitinho silencioso. Conquista-se com a nossa capacidade de escrutiná-las e, sobretudo, com a sua vontade de serem escrutinadas.
O debate político, insisto, não pode servir de pretexto para que tantas perguntas relevantes não sejam respondidas com inteira clareza. Até por uma razão óbvia: os governos vão e vêm. As instituições ficam.
(Artigo da VISÃO 1340, de 8 de novembro de 2018)