Agora ando no setenta e oito. De manhã corro para a paragem e, pelas pessoas que esperam, sei se ele já passou ou não. Como alternativa apanho o três. Mas não é a mesma coisa. Demora mais tempo, o ritmo é diferente e não vejo aquele menino. Ao primeiro olhar, até que nem me agradou. Entrou a correr, ofegante, suado, depois da mãe ter conseguido parar o autocarro já em andamento. Uns quatro anos de gente dentro dum fatinho de algodão de camisola sem manga e calção. Sandálias de plástico, mochila às costas e um baldezito na mão. É um pouco gordo e o nariz é rubicundo. Sentaram-se à frente, de costas para o condutor e de face para o resto dos passageiros. Eu estava mesmo defronte e, ao meu lado, um dos muito reformados que, logo de manhã, se passeiam pela cidade nos autocarros. A mãe é nova, é tão nova, terá vinte anos? O olhar é vago, virado para dentro, parado e verde, sem futuro e, quando se desvia, por acaso, do caminho interior, é perdido e medroso quando cruza um outro olhar. Tem o cabelo dos anjos, loiro com caracóis soltos que caem sobre uns ombros descaídos. É magra, quase transparente de branca e veste roupa ao acaso que, nem assim, lhe assenta mal. As mãos são longas, terminando inesperadamente numas unhas esgaçadas e dedos gretados de químicos. Às vezes parece acordar com a voz suplicante do menino.
– Mãe, ó mãe, nós ontem fomos ao shopping não fomos mãe?
Mas não responde nem olha para ele, continuando a afogar-se em angústias.
Ele não desiste e vai-a chamando para o mundo num tom cada vez mais alto.
– Ó mãe, olha aquele cãozinho! A tia Zirinha também tem um, não tem mãe?
Ninguém lhe responde mas ele continua, agora aos berros.
– Eu hoje vou à praia e vou brincar com os meus amigos!
– Que sorte tens! – diz-lhe o reformado. Eu também gostava de ir.
– E amanhã também vou, não vou mãe? – continuou, agora mais animado.
Ela mantém-se imóvel, só pestaneja e, mesmo assim, sem convicção.
– Tu andas no infantário? – pergunta-lhe o reformado.
– Agora ando. Dantes estava na casa da tia Zirinha mas ela agora partiu um braço e já não pode ficar comigo, não é mãe?
– Coitada da tua tia- diz o reformado- deve ter pena de não poder ficar contigo!
– Ela à noite está comigo. Nós vivemos todos juntos, não é mãe?
– Ai vivem, é? E são muitos?
– Sou eu mais a minha mãe, a minha tia, o meu tio Tono, o Manel, a minha madrinha Alice e o Bruno. Ah, e o Faísca.
– O Faísca é o cão?
– É. É preto e branco e à vezes a minha tia Zirinha bate-lhe porque ele mija na sala.
O autocarro começa a rir. Já estamos todos presos àquele boletim matinal. E o reformado continua a tirar-nos as perguntas da boca.
– Olha lá, a casa deve ser muito grande para caberem todos….Onde é que tu vives?
– No bairro da Pasteleira, bloco “C”.
– Então a casa deve ser pequena para toda a gente…
– A tia Zirinha já pediu outra à câmara mas não nos dão. O meu tio Tono anda em cadeira de rodas e nunca sai à rua porque a casa é no terceiro andar. Só temos um quarto de banho e quando estou aflito há de estar sempre lá gente. A minha tia diz: “desenrasca-te” e eu vou ao vaso da salsa que está na varanda. Outro dia enganei-me e fiz pró lado. À tarde a vizinha de baixo veio tocar à nossa porta porque a roupa estava molhada. Mas eu não tive culpa, pois não?
– Claro que não! Olha lá, como é que vocês tomam banho?
– Só tomamos banho ao domingo. Primeiro vão os grandes e no fim tomo eu e o Faísca.
Gargalhada geral do autocarro.
– O cão toma contigo?
– Toma, mas é de chuveiro, ele fica em baixo e apanha a água que escorre.
– Isso é que ele é um cão com sorte!
– O meu tio Tono diz que os cães são melhores que as pessoas.
– Isso não é verdade! O teu pai deve ser bem mais teu amigo que o Faísca…
O autocarro ficou em “suspense”…
– Essa é que é boa! Nunca o vi! A minha mãe diz que ele é um grandessíssimo filho da …
Ouviram-se alguns risos despropositados dos que não tinham ouvido a história desde o princípio. Dos outros, ouviu-se um “ohhhhhhhhhhhhh” baixinho, triste e envergonhado.
A mãe pareceu acordar de repente, segurou a criança pelo cachaço e deu-lhe uma bofetada, ao mesmo tempo que lhe lançava um olhar ameaçador.
– Ó senhora, não bata no miúdo – berrou o toxicodependente que tinha entrado na paragem anterior. As crianças não têm culpa das asneiras que fazemos!
Ela corou de vergonha e, para disfarçar, fingiu que apanhava do chão o passe.
O menino, entretanto, chorava com a cabeça descaída contra o vidro da janela.
Mas o autocarro ia com pressa, indiferente ao drama daquela mãe solteira e guinou violentamente numa curva, obrigando-me a agarrar ao varão à minha frente.
A rapariga deu um berro e estatelou-se no chão, sem tempo para se proteger. O reformado levantou-se imediatamente para a ajudar e tentou dar-lhe uma mão que ela rejeitou no mesmo instante.
– Merda, merda de vida – berrou desesperada.
O menino agarrou-se a ela assustado, lançando olhares esquivos e assustados para nós.
– Ó senhora, olhe que tem a vida pela frente! – diz o reformado – Olhe o menino perfeitinho que Deus lhe deu!
Mas ela não mais levantou a cabeça. Pegou com esforço no filho ao colo, do outro lado colocou o saco xadrez, premiu o botão para parar e agarrou-se ao varão, perto da porta de saída. Quando o autocarro parou, ela saiu apressada, quase a correr, imagino que envergonhada pelo desabafo final, por ter, numa frase desesperada, posto a nu a sua vida.
Após a confusão da entrada e saída dos passageiros, o autocarro prosseguiu o seu caminho, mas ia mais pesado e lento, mais triste, silencioso e pensativo, diria eu com o motor combalido e apertado. Faltavam ainda duas paragens para chegar ao meu destino. Contudo, decidi sair antes e percorrer a pé a distância que restava.
Enquanto ando penso melhor. Organizo-me, estruturo-me e autoconsolo-me. E eu necessitava fazê-lo após o que vira e ouvira. Ah, como a vida é triste, às vezes!
Quando por fim cheguei ao hospital, na sala de espera da consulta avistei um menino meu doente. Levantou-se de um pulo e abraçou com força as minhas pernas, ao mesmo tempo que me entregava um raminho de flores campestres.
Ah, como a vida é alegre, às vezes! – pensei.
Turiz, 24 de Outubro de 2018