Por razões profissionais (nunca tendo sido eu próprio jornalista, era à época administrador do jornal Expresso), fui um espectador atento do tratamento jornalístico dado ao caso Casa Pia. Gosto de acreditar que a atenção mediática que o caso mereceu, de alguma forma, contribuiu para que a sociedade portuguesa tenha tomado consciência de uma das páginas mais negras da nossa vida coletiva. A ideia de que um grupo de menores, deixados à guarda do Estado, pudesse ser vítima de abusos sexuais continuados por parte de uma máfia organizada com ligações à própria instituição é de molde a revoltar as entranhas a qualquer cidadão. A expressão pública do caso, gosto também de acreditar, terá tornado mais difícil (infelizmente não impossível) que um flagelo destes possa repetir-se.
Mas nem todo o jornalismo que à época se fez, não tenho problema em admiti-lo, ficará para a história como um exemplo de boas práticas e um motivo de orgulho para a classe. Alguns dos “acusados” no espaço mediático nunca chegaram a sê-lo no plano jurídico. Alguns dos que se viram efetivamente acusados, foram, mais tarde, inequivocamente ilibados pela Justiça. Não obstante, uns e outros pagaram, e continuam a pagar, um preço profissional, pessoal e familiar impossível de imaginar para todos nós, que nunca vivemos na pele a experiência de uma acusação infundada no caso de um crime tão abjeto.
Se agora me deu para recordar esta história é porque encontro um paralelo, não entre os crimes propriamente ditos, mas entre as formas de acusação no espaço público que então se fizeram e que hoje se fazem na sequência do movimento #MeToo. Agora, tal como antes, não está em causa a gravidade dos crimes em questão. Uma violação – consumada ou apenas tentada – é um crime hediondo que tem de ser exemplarmente castigado. E nem a passagem do tempo pode ser, obviamente, uma atenuante. Assim como não seria o caso se, só agora, quase 20 anos passados, tivéssemos sabido dos crimes perpetrados na Casa Pia.
Acontece que, então como agora, o risco de fazer acusações infundadas, julgamentos precipitados e linchamentos públicos sem qualquer possibilidade de apelo, recurso ou reparação é muito elevado. Então como agora, é muito mais fácil acusar do que defender no espaço público. Então como agora, uma “condenação” pública raramente tem um justo contraponto (em intensidade, em alcance, em espaço mediático) numa absolvição judicial. Então como possivelmente agora, ficam pelo caminho carreiras e sobretudo vidas destruídas.
Tudo isto, é bom que se diga, é tão válido para um herói nacional como para um juiz fascistoide do outro lado do oceano. No espaço público, as acusações não se fazem com base em dados objetivos, em produção de prova, em juízos ponderados. No espaço público, o julgamento é muitas vezes emocional, político, epidérmico. As redes sociais, com o seu imediatismo acrítico e a sua força divisiva, só agudizam o fenómeno.
Vivemos num mundo perigoso. Mas neste caso não vale a pena queixarmo-nos dos jornais, dos tribunais ou do Facebook. O perigo somos nós e é bom que tenhamos consciência disso.
(Artigo publicado na VISÃO 1336, de 11 de outubro de 2018)