Tudo menos unânime. Se há legado que o João Semedo nos deixou, esse não foi certamente o do unanimismo, mas sim o de propostas de contraste a forçar a sociedade a fazer escolhas fortes.
O apreço pelo exemplo cívico do João Semedo – tão marcante na reação de todos os quadrantes, no momento da sua despedida – evidencia dois traços da sua atividade pública. O primeiro foi a autoridade das suas intervenções, advinda de um conhecimento detalhado da realidade. Foi sempre difícil para os seus adversários criticar a competência das suas propostas. O João estudava exaustivamente o funcionamento das coisas, antes de propor um funcionamento diferente. As suas propostas tiveram sempre a marca desse imenso trabalho prévio. O segundo traço foi o da elegância. Nos grandes e pequenos debates, o João Semedo cativava em vez de crispar, abria espaços de argumentação em vez de ceder ao soundbyte fácil.
Tudo isso foi sublinhado nas palavras de respeito sincero com que, da direita à esquerda, se falou do João, no momento da sua morte. E não, não foi aquele apagamento das distâncias que a morte sempre provoca.
Porém, as suas lutas foram fraturantes, não por qualquer moda frívola, mas porque foram lutas que trouxeram à superfície fraturas disfarçadas. Mesmo (sobretudo?) quando as lutas da vida do João Semedo não tiveram outra justificação senão o bom senso ou a decência, ele clarificou fraturas existentes e quis unir, para que um dos lados dessas fraturas – o da mudança justa – triunfasse. Dou disso três exemplos.
O primeiro foi o da denúncia da natureza sistémica, não episódica, das chamadas “crises bancárias”. Quando, no auge do seu notável desempenho na Comissão de Inquérito ao caso BPN, o João afirmou que a melhor maneira de assaltar um banco é administrá-lo, estava a vincar que, para lá das singularidades do caso concreto, o uso da Banca como ferramenta de enriquecimento das elites, instaladas ou aspirantes, do capitalismo financeiro faz parte do funcionamento do sistema em si mesmo. Fratura, portanto: o João não pôs a nu a excecionalidade de um gangue, mantendo incólume o sistema. No avesso da unanimidade, ele quis mostrar como, no caso BPN – precedente de sucessivos cambalachos bancários –, a patifaria organizada apenas potencia em concreto um sistema patife.
O segundo exemplo é o do direito a morrer com dignidade. A luta do João Semedo foi de disputa de conceções e de práticas. Ele assumiu, com uma clareza convicta, um dos lados da fratura instalada entre a canonização de modelos de fim de vida, que não respeitam a dignidade relacional de cada um, e a ampliação do espaço da autodeterminação sem prazo de validade. O João escolheu e forçou uma escolha: manter a prática da aceleração da morte sedada, disfarçada pela desculpa do duplo efeito, ou assumir sem máscara a antecipação da morte como uma expressão de respeito da vida digna até ao fim. Foi, pois, no avesso da unanimidade que o João se colocou. Devemos-lhe isso, e foi essa clareza que o País lhe agradeceu.
O terceiro exemplo é o do resgate do Serviço Nacional de Saúde. Quando António Arnaut o procurou, especificamente a ele, para, em conjunto, elaborarem uma proposta de revisão da Lei de Bases da Saúde, fê-lo porque sabia que no João Semedo encontraria não um defensor de consensos moles que legitimassem a tomada de assalto do SNS pelo negócio privado, mas um militante do SNS como serviço público por excelência, universal, gratuito e descentralizado. E, mais, Arnaut viu em Semedo não um redator de manifestos, mas um conhecedor rigoroso e competente das políticas de Saúde e das suas instituições. Por isso, a proposta que elaboraram identifica competentemente a fratura hoje existente acerca do SNS e escolhe um lado.
Clareza, competência, radicalidade e respeito – que se reconheça ser esse o legado forte do João Semedo, não o esvaziando num unanimismo que o João combatia, é a homenagem certa que a democracia lhe pode e deve prestar.