Nicol Quinayas foi agredida na paragem do autocarro por um segurança racista. Logo se discutiu se a culpa tinha sido dela. Se tinha passado à frente, se tinha insultado o agressor, se estava embriagada. Como se houvesse atenuante que justificasse a desmesurada violência com que foi tratada.
A tendência para isolar a motivação racista do crime chegou cedo, como sempre. Até o nosso Alto Comissário para as Migrações veio dizer em entrevista que não somos um povo racista, mas como todos os outros temos os nosso preconceitos. Descansem os egos portugueses hospitaleiros e de brandos costumes, que racismo por cá é coisa pontual, segundo a pessoa que recebe um salário precisamente para lutar contra (pasmemos): o racismo!
Não faltou também Rui Moreira, mais preocupado com que o mundo achasse que o Porto é uma cidade racista do que com o caso Nicol, apontando o dedo aos inimigos imaginários de sempre, que insistem em denegrir o bom nome de uma cidade de gente tão boa! Mas, claro, para o senhor presidente da CMP, o marketing urbano está acima de todas as coisas, e qualquer má notícia sobre a cidade do Porto deve ser repelida com indignação profunda e, de preferência, muita vitimização.
A nossa tendência para a negação de que somos um país racista, com muita gente racista, instituições racistas e desigualdades sociais profundas associadas à descriminação racial, é patológica. Mesmo perante as evidências… Prova disso são os incontáveis casos de violência policial com jovens negros e comunidades ciganas, acumulados ao longo das décadas, com uma decapitação na esquadra, tiroteios em operações stop, intimidação de bairros inteiros, tudo com muito encobrimento corporativo e político à mistura, com penas demasiado leves, e arquivamentos benévolos.
Prova também é a nossa relação com a história, na insistência em papagaiar os mitos lusotropicalistas do tempo da outra senhora, sem reconhecer que, de facto, ao longo dos séculos, foram mais os genocídios do que os encontros de culturas. Dos mouros escorraçados, aos judeus expulsos, aos africanos escravizados, aos índios dizimados, até ao Estado Novo, que ainda mantinha o estatuto de indigenato nas colónias e muito trabalho forçado nas roças.
O que interessa se os outros foram e são piores? Como é que a nossa imagem mitificada de país acolhedor e aberto ao mundo pode ser mais importante do que a defesa dos direitos humanos? É que ao dizer que não somos racistas, estamos a ignorar o sofrimento quotidiano de milhares de pessoas. Ao dizer que o racismo em Portugal é pontual, estamos a negar a existência de uma estrutura social, histórica e política que racializa parte da população. Estamos a ignorar o racismo institucional, reconhecendo apenas alguns episódios esporádicos em que pessoas racistas discriminam outras. Estamos a personalizar algo que é grave sobretudo porque é social.
Dizer a Nicol Quinayas, para ir apanhar o autocarro para a terra dela é gravíssimo, espancá-la ainda é pior, mas certamente que o sistema que empurra milhares de pessoas racializadas para bairros segregados, que reproduz dinâmicas de exclusão social, que aumenta as probabilidades de delinquência e encarceramento, que limita fortemente as hipóteses de mobilidade social, é ainda mais preocupante. Primeiro porque não é pontual, é estrutural. E segundo porque não é da responsabilidade de um brutamontes, é da responsabilidade do Estado.
E é por isso que o Alto Comissário para as Migrações não estava a ser optimista, muito menos benévolo, estava a ser alienado e irresponsável. Como todos nós, enquanto não discutirmos isto a sério. Reconhecendo os erros do passado, para perceber e desconstruir o mais importante: os problemas do presente. Não apenas porque fazem parte da mesma dinâmica histórica, mas porque, por muito que já tenha sido feito, as nossas instituições ainda não estão livres desse olhar eurocêntrico, xenófobo e enviesado, que surge e ressurge, reproduzido vezes sem conta, sempre que o racismo insiste em ser “pontual”.
(Crónica publicada na VISÃO 1324 de 19 de julho)