Ajustes de contas à parte, arrependimentos e vergonhas mais bem ou mais mal digeridas, vale a pena fazer alguma doutrina geral sobre o caso José Sócrates.
Importa, antes de mais, perceber a questão de fundo. E a questão de fundo é que, gostemos ou não, o juízo legal e o juízo político são conceitos de natureza profundamente diferente.
O juízo legal (na cabeça deste escriba pouco versado em coisas de leis) funda-se, nos estados de direito civilizados, na ideia de que alguém só pode ser condenado se não subsistir nenhuma dúvida razoável sobre a sua culpabilidade (é o célebre in dubio pro reo que julgo ainda recordar das superficiais pinceladas jurídicas com que se embelezavam os cursos de economia e gestão na década de 80). É por isso, é por causa desta ideia basilar, que se erigiu um conjunto de princípios (como o da presunção da inocência ou o de o ónus da prova recair sobre o acusador) e de mecanismos processuais (em particular, a hipótese de sucessivos recursos) que no essencial servem para proteger o réu. Acrescente-se que, em nome da separação de poderes, este juízo é da exclusiva competência dos tribunais.
O juízo político é de natureza totalmente diferente. Porque é, desde logo, não tanto matéria para tribunais, mas feito, em última análise, por cada um de nós (somos, de certa forma, juízes da última instância de recurso nesta frente). O juízo político é o que cada um de nós faz no momento de decidir se entendemos que alguém tem condições para exercer cargos políticos e públicos. E é também o que os próprios partidos e demais atores políticos têm de fazer em primeira instância. Este juízo é diferente do primeiro na medida em que é diferente no âmbito (há comportamentos perfeitamente legais que podemos considerar inadmissíveis politicamente); na medida em que as fasquias são diferentes (pode bastar-me a dúvida sobre a honradez de alguém – e não a certeza da falta dela – para decidir que essa pessoa não deve ocupar um cargo político); e na medida em que os timings dos juízos legal e político são necessariamente irreconciliáveis (o juízo legal é mais lento precisamente por causa de todas as garantias dadas – e bem – aos acusados, sendo que cada um de nós faz juízos políticos a todos os momentos e lavra sentenças em cada ato eleitoral).
Ilustremos isto de novo com o caso em apreço. Sócrates tem obviamente direito a um julgamento penal com todas as salvaguardas que um país civilizado tem para lhe garantir. Desse ponto de vista queixaram-se provavelmente bem todos quantos (socialistas ou não) se insurgiram contra um aparente excesso do tempo da sua prisão preventiva, contra a morosidade do processo (que é uma forma de injustiça em si mesma) e sobretudo com as escandalosas violações do segredo de justiça que foram ocorrendo em todo este caso. É a justiça que nestes particulares clamorosamente falha.
Mas enganam-se todos quantos alegam que não é possível fazer um julgamento político até ao fim do processo legal. Não é assim de facto e provavelmente nunca pode ser assim. Pelo meu lado esperarei tranquilamente que o tribunal condene ou absolva o ex-primeiro-ministro. Mas há muito tempo que para mim é claro que Sócrates não tem quaisquer condições para exercer um cargo político. É certo que a fasquia da prova é aqui menos elevada e as garantias para o réu muito menores. Mas a reversibilidade dos juízos políticos também é total. Vitorino que o diga.
Tudo isto dito, importaria agora que os partidos políticos fizessem alguma doutrina abstrata sobre estes casos. Porque mais existirão. E porque seria higiénico para a democracia que – até os juízos políticos – se enquadrassem, sempre que possível, em regras gerais.
(Artigo publicado na VISÃO 1314, de 10 de maio de 2018)