Se a política é arte do possível, a arteirice
é sempre mais necessária quando as posses são poucas como é, sempre, o caso do nosso Governo patriótico das esquerdas unidas.
A última habilidade do dr. Costa é
a “reforma” da habitação.
Chega a ter graça ler a imprensa do fim de semana. Há quem se entusiasme com a “reforma liberal” do choque fiscal na habitação sem fazer contas. Há quem aplauda regras que já existiam, como a proteção dos idosos nos arrendamentos longos. Já não há quem se lembre de que era do lado da oferta – a segurança social ia investir na reabilitação urbana, diziam há três anos – que o Governo de esquerda ia resolver a política pública de habitação. E há quem discuta a requisição de casas devolutas, como se a proposta de Helena Roseta fosse do PS.
Dá para tudo. Mas é no meio da confusão que o nosso PM está como peixe na água. Do que diz é sempre possível tirar qualquer coisa de esquerda, para contentar os Morettis da geringonça, e, ao mesmo tempo, uma vaga intenção de direita, de normalidade, para tranquilizar os colunistas que nos embalam sem ler mais do que a propaganda.
Aqui, o possível “depois da austeridade” não é cumprir nenhuma das promessas sobre o investimento na reabilitação urbana ou na habitação. Não é, como se esperaria da esquerda, atuar pelo lado da oferta, obrigando as câmaras a colocar no mercado os seus milhares de imóveis devolutos. É prolongar a maior causa do estado de coisas atual: o congelamento de rendas para dele tirar benefícios eleitorais.
Comecemos pelo princípio: o ataque à propriedade privada com a ameaça de requisição de imóveis devolutos. O Estado ameaça, afinal, deitar mão à propriedade privada quando não é sequer capaz de dar uso à sua propriedade habitacional.
Embora se perceba que o PS quer deixar a sua deputada Helena Roseta sozinha, só muita falta de memória permite este cheiro de Gonçalvismo que perpassa por toda a proposta. Portugal é um país pobre, de pequenos proprietários, como explicava bem Vitorino Magalhães Godinho, de gente que amealha e aforra comprando umas leiras e umas paredes com teto e delas espera o amparo de uma vida menos sobressaltada, sobretudo na velhice.
É talvez por isso que, mesmo em 1976, a CRP consagrou a propriedade como um direito fundamental. Pouco depois, é certo, da brutalidade revolucionária do famoso DL 198-A/75, que mais do que congelar rendas legitimou as inebriantes ocupações do tempo, que não havia mesmo vergonha nenhuma de ir buscar a quem estava a poupar, como diria a deputada do Bloco.
Não parece possível este retrocesso, mas a discussão entretém como convém ao Governo. Que, do outro lado, acena com metade da redução da tributação para quem faça contratos com dez ou mais anos de prazo. A ideia vai no caminho certo mas tem dois problemas. Não cria estímulo suficiente e, pior, quem vai ter confiança para investir num quadro legislativo que muda cada vez que aos políticos dá jeito?
Enfim, o essencial não é nada disto. É só a possibilidade de voltar ao congelamento de rendas, mecanismo que, associado à inflação, foi a primeira causa de degradação do mercado habitacional.
Sejamos justos, o congelamento não foi só obra de Vasco Gonçalves. É um legado secular que começa na Primeira República, em 1910, que Manuel Arriaga e Bernardino Machado tornaram definitivo a propósito da Grande Guerra em 1914 e que Salazar mansamente interrompeu durante 15 anos até, em 1943, voltar a um congelamento que teria orgulhado Sidónio Pais.
Uma longa tradição de política pública à conta dos pequenos proprietários e dos seus rendimentos foi interrompida por António Costa em 2006 (só por ignorância ou má-fé se pode chamar “Cristas” ao regime de arrendamento em que não tocou qualquer dos princípios do diploma Sócrates/Costa) quando já se sabia que o congelamento é a ruína dos proprietários e, consequentemente, do mercado.
A primeira alteração deste Governo foi um volte-face nessa lei que protegia os mais carenciados com um apoio de renda que o Estado não tinha, que quis poupar ou gastar nas reversões, tanto dá. A segunda é mais do mesmo. O congelamento, um erro histórico, é peça que conta para ganhar mais uns votos. Um dia ainda percebemos que o rei vai nu. Desconfio que será, como de costume, demasiado tarde.
(artigo publicado na VISÃO 1313, de 3 de maio de 2018)