Já aqui defendi que a dicotomia esquerda-direita é hoje insuficiente para organizar o espaço político-partidário europeu. E é insuficiente porque, também o escrevi, não oferece uma resposta dicotómica à principal questão do nosso tempo.
Essa questão, tenho defendido sem originalidade, é a seguinte: num mundo global, sem fronteiras, em que a velocidade do tempo é vertiginosa, em que diariamente nos confrontamos com realidades que colocam em causa as anteriores, como devemos atuar? Como reagir perante novos mercados, novas empresas, novos produtos, sabendo que eles podem colocar em causa os que conhecemos? Como reagir a novas profissões, novos métodos, novas tecnologias, sabendo que elas criam desacerto nos que vivem de acordo com modelos a desaparecer? Como reagir a novos trabalhadores, emigrantes ou migrantes, que entram no nosso espaço, com motivações e experiências que, muitas vezes, concorrem com as dos que cá estão?
Não estou a falar de teoria. Esta questão vai da emigração à Uber, da importação de produtos do Paquistão à inteligência artificial, do big data às relações laborais, da previdência social ao ecossistema empresarial. A transformação é tanta, tão rápida e de tal ordem, que tudo enfrenta o desafio da mudança. Desafio transversal, que toca a todos e em todos provoca receio, ansiedade, temor, porque todos tememos ficar para trás, perder o comboio. Trata-se por isso de uma questão que vai muito além da economia ou da finança: toca na vida de todos, coloca-nos perante a insegurança de não saber o dia de amanhã.
Têm-se desenhado duas respostas políticas a esta questão. Uns, como é o meu caso, defendem uma sociedade mais aberta, capaz de integrar todas estas mudanças, adaptando-nos, conseguindo uma transição agregadora. Outros defendem uma sociedade mais fechada, capaz de nos preservar destas mudanças, atrasando-as ou repelindo-as, evitando o embate, protegendo-nos.
Esta divisão, atualíssima, não corresponde à dicotomia esquerda-direita que tem organizado o sistema partidário europeu. Há, nos grandes partidos da esquerda, quem defenda modelos abertos, concorrenciais, de sociedade, e quem defenda, pelo contrário, e no mesmo partido, o regresso de fronteiras, de protecionismo. E o mesmo sucede à direita, onde, nos mesmos partidos, convivem estas duas respostas.
Temos, por isso, que a diferença entre esquerda e direita não organiza partidariamente as duas respostas atualmente em confronto. Pelo contrário, nos mesmos partidos essas respostas digladiam-se, alimentando debates internos identitários muito fortes, promovendo cisões, reagrupamentos, constantes dúvidas existenciais.
Basta acompanhar o estado dos partidos europeus para perceber que há blocos dentro de partidos socialistas que são tentados por discursos altermundistas, e outros blocos que se sentem mais próximos de blocos dos partidos conservadores, numa sintonia há alguns anos considerada impossível; assim como há blocos dentro de partidos conservadores a adotar discursos protecionistas, de fecho de fronteiras, e outros blocos que se sentem mais perto de blocos dos partidos socialistas, numa sintonia que antes seria contranatura; assim como é evidente uma similitude significativa no discurso das extremas esquerda e direita.
Tudo isso é um sinal de uma nova geometria, uma nova dicotomia a formar-se, provocada pela necessidade de dar resposta à grande questão do nosso tempo. É ela que está a ditar a transformação do sistema partidário europeu, com a erosão, a cisão, a reorganização que está em curso em tantos partidos.
Sucede que essa transformação é lenta, não é fácil, implica novas alianças, implica perceber o fim de uma era, implica a surpresa de quem nunca se viu noutro lugar. Mas essa transformação é essencial porque não podemos viver num sistema que não esteja organizado para colocar em confronto as duas respostas à grande questão do nosso tempo.
Quanto mais tempo demorar essa transformação, mais espaço é deixado aos populistas, que surgiram e conquistaram espaço precisamente porque são os únicos que têm conseguido oferecer uma resposta coerente, inequívoca, ainda que profundamente errada, a essa grande questão do nosso tempo, oferecendo aos eleitores um guião, uma cartilha, uma leitura. Esse é o sucesso dos partidos populistas. Não é tanto o que defendem, mas a forma inequívoca como centram o discurso na questão da mudança. Porque lhe dão resposta, têm sucesso.
Como tenho dito, é impressionante ver como, no plano europeu, só Macron conseguiu até agora fazer um discurso positivo, afirmativo, sem adversativas, a favor de uma sociedade aberta e global, enquanto os partidos tradicionais se enredam em dúvidas existenciais sobre o mundo global, que mais não são do que a dificuldade de perceber esta nova dicotomia a formar-se e a necessidade de nela tomar partido.
(Artigo publicado na VISÃO 1311, de 16 de abril de 2018)