Com a financeirização da economia, que haveria de conduzir à crise do subprime e depois à crise das dívidas soberanas, a palavra “liberalismo” tornou-se quase maldita no espaço público. E já nem falo do epiteto “neoliberal” que se fez insulto vazio de verdadeiro conteúdo substantivo.
Esta constatação podia ser um simples incómodo para os liberais clássicos (não confundir com os conservadores irritantes que insistem em abrigar-se sob o teto liberal) ou uma maçada para quem se preocupa com o rigor académico das definições políticas. Mas não é. O problema é mais fundo e ajuda a explicar parte do vendaval populista que tem assolado o mundo ocidental. Como dizia o outro com não menos rigor académico, isto anda tudo ligado. Mas não desista já. Deixe-me pelo menos tentar explicar.
A ideia democrática – na sua definição mais restrita – responde a uma pergunta simples: como escolher quem nos governa? A resposta que nos dá é também relativamente simples: através do voto de uma maioria de cidadãos.
A ideia liberal responde a uma pergunta radicalmente diferente: quais são os limites do poder dos que nos governam (sejam eles escolhidos através de um método democrático ou não). A resposta – aqui exagero na simplificação – é no essencial esta: em torno de cada um de nós existe uma esfera de direitos pré-políticos e ditos fundamentais que ninguém pode violar. Nem mesmo um líder eleito democraticamente e por uma maioria esmagadora de eleitores. E é para garantir que esses direitos são protegidos que, na doutrina liberal, se defende a existência de constituições (que, escritas ou não, cristalizam esses direitos fundamentais) e uma efetiva separação de poderes (que serve como um antídoto expedito à tentação de abuso de poder e de violação dos tais direitos fundamentais).
Pois bem, para o que aqui me traz, o que interessa é perceber que as sociedades políticas onde vivemos são – gostemos ou não – sociedades demoliberais. Aceitamos uma construção política que abraça tanto o ideal democrático (que fixa a forma como escolhemos os nossos governantes) como o ideal liberal (que lhes fixa a área de atuação legítima).
Acontece que a diabolização da ideia liberal de que falava acima tem vindo, paulatinamente, a desequilibrar o valor que damos a cada um destes dois pilares fundamentais das nossas sociedades políticas. Pouco a pouco, vai-se consolidando a ideia de que a regra democrática é o alfa e o ómega do funcionamento das nossas sociedades políticas. A regra da maioria a tudo se aplica, tudo justifica. Ou, o que é dizer o mesmo, os eleitos democraticamente têm carta branca para governar como bem entendem por mais atentatórias dos direitos fundamentais que sejam as suas ideias. E escuso-me a explicar porque o são.
Camaradas. Gostem ou não gostem, a luta pelo resgatar dos ideais liberais é uma luta que interessa tanto à esquerda como à direita. Enquanto não tivermos a coragem de explicar, no espaço público, que a democracia não chega, vamos ter de nos contentar com os Orbans ou os Salvinis que nos forem servindo.
Liberais do mundo inteiro: uni-vos.
(Artigo publicdo na VISÃO 1306, de 15 e março de 2018)