António Costa precisa de conflitualidade no debate político para poder legitimar e fazer subsistir a sua solução governativa.
É por isso que o primeiro-ministro aposta, insiste, teima, na divisão ética entre esquerda e direita, a esquerda boa e a direita má. Sem a direita execrável, sem a direita que não quer saber dos pobres, sem a direita que quer o mal do País, a solução governativa das esquerdas perde o cimento, esboroa-se, porque deixa a descoberto a incompatibilidade relevante das esquerdas unidas.
Não estaríamos mal se essa divisão fosse real, se tivéssemos em Portugal um PSD e CDS apostados numa autocracia das elites, defendendo um programa destinado a enriquecer uns quantos, empenhados em manter a boa vida de grupos económicos privilegiados. E nem estaríamos muito mal se, não sendo isso inteiramente verdade, fosse essa a crença real, absoluta, do primeiro-ministro, se ele acreditasse nisso, nesse perigo, como um Quixote e os seus moinhos.
Sucede que nada disso se passa.
Com todas as distinções que possam fazer-se entre os partidos, que existem e são relevantes, PSD e CDS inscrevem-se ambos na economia social de mercado, perfilham ambos doutrinas sociais e defendem ambos o modelo social europeu. É o que aliás sucede com a esmagadora maioria dos seus partidos congéneres, e é assim há décadas. De forma alguma, em parte alguma, se antevê uma direita sem escrúpulos, pisando e gozando dos mais pobres, por mais discordâncias que a esquerda possa ter quanto às suas políticas. O caso do BES está aí para o mostrar, por exemplo: acaso PSD e CDS protegeram aquele grupo e aquela família, encobrindo-os, desviando dinheiros públicos para os ajudar?
E António Costa sabe disto, como sabe o PS, porque na hora H, na hora de discutir a Europa, na hora de discutir o Mundo, na hora de discutir alianças civilizacionais, na hora de discutir questões institucionais, na hora de assinar tratados, é com o PSD e o CDS que o PS vem falar, deixando de lado a esquerda que consigo governa, que pode servir para aprovar orçamentos, mas que não serve para discutir política internacional porque se filia, ela sim, e ao contrário do PSD e CDS, em famílias políticas que abjuram a Europa e a democracia ocidental e que convivem com, e em alguns casos ativamente apoiam, ditaduras assassinas.
Esta atitude conflitual do primeiro-ministro, esta separação artificial entre direita má e esquerda boa, é por isso tática, instrumental, e por isso irresponsável e pouco própria de um estadista.
É que sendo certo que essa atitude pode ajudar a cimentar a aliança à esquerda, dando-lhe a única água que pode beber, não é menos certo que essa atitude degrada o debate, que passa a ser feito sobre o alegado caráter e ética e bondade e democraticidade dos intervenientes e não, como deveria ser, como teria de ser, sobre propostas, caminhos, modelos de desenvolvimento. Esse é o terreno mais fértil para os populismos, onde nascem projetos radicais, onde se ensaiam debates ideológicos artificiais que atrasam a resolução dos problemas do país, onde se afastam os moderados e se chamam os demagogos, tudo coisas próprias de países com democracias pouco maduras.
É essa a irresponsabilidade do primeiro-ministro, abrir caminho, a pretexto de uma divisão artificial, inexistente, e por isso tática, ao pior do debate político, à radicalização da discussão, ao adiamento do essencial, tudo porque isso convém à união das esquerdas. Já para não falar da normalização, naturalização, da extrema-esquerda, outra face visível do processo de radicalização.
Para manter essa atitude, irresponsável, o primeiro-ministro abdica também de ser um estadista, como se viu agora nas suas tristíssimas declarações sobre a feliz saída de Portugal do estatuto de lixo por parte de uma agência de rating.
É que o primeiro-ministro não se limitou a louvar o seu governo, ignorando o anterior, nesse esforço e nesse mérito, ignorando o programa de assistência, a troika, os sacrifícios, a origem de tudo isto. Isso, que já seria sectário, foi o menos.
O primeiro-ministro fez pior, e disse, e em alguns casos pôs o governo a dizer, que a saída do lixo se deve a este governo e só a este, que se fosse o governo anterior ainda estaríamos no lixo, voltando a dividir o País entre bons e maus, como se fosse verdade, como se alguma vez fosse possível ter saído do lixo sem ter passado pelos anos de chumbo a que o PS nos remeteu com a governação Sócrates.
Pode meio mundo elogiar o talento tático do primeiro-ministro, mas vamos pagar caro esta irresponsabilidade, este absoluto desapego à verdade em favor da tática, porque atrás disto vem muito pior.
(Artigo publicado na VISÃO 1281, de 21 de setembro de 2017)