Todos recordam aquelas imagens infames que nos chegaram através da internet, dos canais de televisão e da imprensa nos idos de setembro do ano passado. O cenário era um campo aberto pelo qual se viam a correr centenas de pessoas. Havia polícias húngaros uniformizados e os oráculos dos noticiários informavam-nos que a cena decorria perto da fronteira com a Sérvia.
Ninguém esquece aquela camerawoman loira, aparentando cerca de 40 anos, de calças de ganga e camisa azulada. De repente, alça da perna e faz tropeçar um homem que parece mais velho do que ela e que viaja acompanhado de um miúdo. As imagens foram gravadas através de um telemóvel de um repórter alemão que perdera o seu cameraman mas não queria perder o que se passava naquele campo onde chegavam diariamente centenas de refugiados que atravessavam os Balcãs (recorde aqui o vídeo).
Poucas horas depois de o repórter Stephan Richter postar as gravações na sua página do Facebook, as imagens chegam a milhares de casas em todo o mundo. Em Espanha, Miguel Angel Galan, presidente da associação de treinadores de futebol do seu país, vê o homem forçado a tropeçar.
Espalhava-se então na internet que também ele era treinador. Que deixara a Síria, com a família. Saberemos mais tarde que tinha quatro filhos, que fora professor de educação física, que vivia na cidade de Deir ex-Zor, uma das maiores da parte oriental da Síria, próxima da fronteira com o Iraque. Quando os bombardeamentos começaram, refugiou-se na cave mas depois aproveitou os 3500 dólares oferecidos por um dos seus irmãos para abandonar o país e procurar refúgio na cidade turca de Mersin. Aí teve de se separar da família, cada um para seu lado, à procura de uma vida que não se confinasse a trabalhos precários e mal pagos.
Regressemos ao espanhol. Osama Mohsen, 53 anos, é esse o BI do nosso refugiado a quem passam a perna, é para ele um dos dele. Quando Osama chega a Munique, na Alemanha, e aí recebe uma chamada de Miguel Galan a convidá-lo a ir para Espanha. Oferece-lhe um ordenado, trabalho como treinador, um apartamento nos arredores de Madrid e a frequência de um curso de espanhol. Na estação de Atocha, espera-o uma festa e dão-lhe a oportunidade de posar ao lado de Cristiano Ronaldo, que levará o filho de Osama até ao relvado do real de Madrid antes do início de um jogo.
Hoje, Osama tenta ambientar-se ao modo de vida espanhol. Frequenta um café árabe onde acompanha os jogos de futebol, aprende a cozinhar e a fazer a lide da casa, enquanto aguarda pela reunificação familiar, que não será fácil porque a embaixada síria na Turquia não faculta à mulher e aos filhos os papéis necessários para fazer prova da ligação familiar.
A história aqui resumida respiga o essencial da reportagem online da Der Spiegel, a veterana revista semanal alemã onde se pratica do melhor jornalismo dos nossos tempos. Petra Laszlo, a repórter de imagem húngara que força a queda de Osama, acabou por prestar-lhe um serviço inestimável: mostrou-o ao mundo. Um mundo onde a solidariedade ainda existe. É uma história feliz, esta, de um tropeção que termina em Madrid e de uma trapaça húngara que tropeçou em si própria.