Quando o Pedro morreu e fomos dizer à mãe, os outros cinco, a única frase que escutámos foi
– Tenham misericórdia de mim
palavra que nunca tinha ouvido da sua boca. Mais tarde acrescentou
– Uma mãe não tem o direito de estar viva quando o filho morreu
e passado pouco tempo, sem nenhuma doença que se lhe conhecesse, foi-se embora, tão magra que o corpo não fazia relevo sob o lençol do caixão. Estou certo que está com o filho agora, o seu único filho moreno, o mais calado de nós, o mais secreto. Falava pouco. Quase nada dizia de si mesmo. Eu gostava muito dele, ele gostava muito de mim. Pouco conversávamos porque não precisávamos de conversar. Aliás, de uma maneira geral, não precisamos conversar, os meus irmãos e eu, temos outras formas de nos entendermos. A maior parte das vezes sem olhares, sem gestos. Como se nada fosse. Em geral o pai também não falava muito. Para quê? O mesmo sangue andava em todos nós, ouvíamo–nos tão facilmente no silêncio. Pedro. Quando estava com o cancro disse-lhe
– Vou morrer, Pedro
E ele, que não chorava quase nunca
(vi-o chorar quando o pai se foi embora)
a sacudir-me furioso, cheio de lágrimas
– Não vais morrer, ouviste, não vais morrer
e a boca dele tremia, o Pedro que pouco mostrava as emoções, que quase nunca mostrava as emoções.
– Não vais morrer
porque a ideia da morte de um de nós era insuportável. E, no entanto, aconteceu. O Pedro, a mãe. O pai morreu em 2004, vi-lhe o perfil na cama do hospital. Aí também fomos juntos. Depois de cinco anos na terra cremou-se o que sobrava a fim de espalhar as cinzas no jardim da casa onde sempre viveu desde o casamento, onde fomos feitos, onde crescemos. Colocou-se o cilindro das cinzas numa mesa do quarto da minha mãe, na ideia de dias depois as deitarmos à terra. Para espanto meu, de cada vez que lá ia as cinzas continuavam ali. Até que perguntei a razão do pai ainda lá estar, naquela coisa discreta, castanha. E responderam-me
– Não podemos porque a mãe fala com ele.
Não estava tontinha, não sofria de doença alguma: falava com o marido simplesmente. Acho que nenhum de nós deu por eles a conversarem dado que sempre foram muito discretos. E, para pessoas que não eram expansivas, comunicavam bastante um com o outro. Volta e meia, quase até ao fim, saíam para fins de semana a dois, não imagino onde. A minha mãe começou a namorá-lo aos catorze anos, tinha ele dezassete. Durou setenta e dois anos, cada um na sua cabeceira da mesa e nós ao meio. Quando estava a pontos de a convidar para saírem o meu pai não dizia Margarida, dizia Margot, na voz sensualíssima que era a dele. Não deve ter sido um casamento fácil porque o meu pai era, muitas vezes, insuportável. Não acho isso um defeito pela simples razão que eu também sou. Uma ocasião eu
– Porque é que a mãe, que é tão bonita, casou com o pai que é tão feio?
Resposta:
– Porque ele tem um charme infinito e uma voz que me transtorna.
E acrescentou, em post scriptum
– Nenhum dos filhos herdou a voz do pai. Tirando tu, um bocado.
O que me aborreceu, claro: um bocado só é uma merda.
Ela ainda
– Desafio seja quem for a comparar os filhos com os meus, em beleza e em inteligência. Só têm um defeito: são mulherengos. Mas, hoje em dia, pergunto-me se isso será defeito.
Para o fim, quando o pai estava sempre na salita
(antigo quarto do João e meu)
com a grande fotografia de Charlie Parker na parede, a minha mãe para mim
– Vai ter com o teu pai que ele quer sempre falar contigo
eu lá me sentava, afastando livros e papéis, o meu pai baixava um bocadinho a música e fazia elogios à mãe, à sua inteligência, à sua beleza, a isto, àquilo e eu, parvo, a ouvir. De quando em quando era tão bruto e agora punha-se com mariquices. Mas claro que gostava. Há muitos pontos em que me pareço com ele mas acho que, no fundo, tinha um bocado de ciúmes. Isso e o facto das netas o adorarem. Adoravam-nos aos dois. Não há dúvida que tive muita sorte com a minha família. Porque é que morreram? Porque é que o Pedro morreu? Não quero morrer depois dos meus manos. Pedro Pedro Pedro Pedro Pedro, cabrão de merda, filho da puta, porque fizeste isto? Sinto uma falta horrível, não me conformo em tu não estares, nenhum dos nossos irmãos se conforma com tu não estares. Quando o João deu a última aula na Faculdade, apareceu no écran
À memória do meu irmão Pedro
e ele, em silêncio, curvou-se para estas palavras em homenagem a ti. Tão bonito o que fizeste, João, tão cheio de amor, tão sincero e tão digno
(foste sempre sincero e digno, entre muitas outras qualidades)
que me escondi nas mãos. A mãe tem razão; não há filhos como os dela. E no momento em que o João se curvou foi aquele em que, em toda a minha vida, me senti mais perto de ti. O nosso mano. O meu mano. Pedro, por favor promete que não voltas a pregar-nos partidas.