As seis personagens que entre segunda, 17 de novembro, e quarta-feira, 19, passaram pela Comissão Parlamentar de Inquérito ao Banco Espírito Santo e ao Grupo Espírito Santo (CPIBES) estão entre os 124 atores-narradores de uma história de enredo intricado e trama condimentada com uma lista de indícios difícil de ler num só fôlego. Uma história, cujo desfecho ainda desconhecemos, mas já sabemos tratar de presumíveis atos dolosos de gestão ruinosa prejudiciais para os interesses do banco, de alegadas manobras dilatórias para ganhar tempo, da suposta prestação de informação maquilhada, truncada e inexata, de alegados erros e de eventual falsificação de contas
, bem como do provável incumprimento sistemático das determinações do Banco de Portugal.
A narrativa fala-nos igualmente de dívida disfarçada em sociedades fachada com sede no estrangeiro, de intermediários na Suíça e no Luxemburgo, da substituição de dívida do Grupo Espírito Santo por dívida do BES e de eventuais práticas ilícitas graves.
E também já conhecemos o presumível vilão, mas de cuja culpa só teremos a certeza no fim, aqui interpretado por Ricardo Salgado, o patriarca de uma outrora poderosa organização de contornos tentaculares e que era conhecido como DDT (o Dono Disto Tudo).
Com o mau da fita identificado, podemos perguntar se ele teria conseguido fazer tudo o que lhe imputam se os vários “departamentos da polícia” tivessem estado mais atento? Se tivessem agido com mais celeridade e com mais determinação, ter-se-ia evitado o assalto ao banco? Também só iremos saber no fim, o que nos vai manter em suspense ainda durante muito tempo.
Na segunda-feira, o chefe de um desses departamentos, Carlos Costa Governador do Banco de Portugal, aproveitou a sua ida à Comissão de Inquérito para reclamar mais poderes. Respondendo à pergunta da bloquista Mariana Mortágua que quis saber se ele não retirou a idoneidade a Ricardo Salgado “porque não quis ou não pôde?”, Costa, que já anteriormente tecera considerações, mais ou menos filosóficas, sobre o “dever” e o “poder”, afirmou que quis fazê-lo, mas não pôde, por causa dos condicionamentos legais. Lamentou até não ter a “arma nuclear” do seu colega inglês que consegue afastar um banqueiro com um piscar de olhos. Talvez o problema não esteja só na lei. Há quem, como a democrata-cristã Cecília Meireles (que é jurista), interprete a legislação como dando “imensos poderes” ao regulador.
Além disso, desde o caso BPN (2008), que o banco central começou a desenvolver um sistema de supervisão mais intrusivo, mais focado no risco e mais transversal e prospetivo, que sujeita a banca a um escrutínio muito mais apertado. Com tantos mais, como é que foi possível o arrombamento da caixa forte, quando primeiros indícios já remontam a 2011?
Ainda por cima mais, tendo o regulador da banca uma equipa de inspeção permanente no BES desde meados de 2009, segundo o vice-governador, Pedro Duarte Neves, numa resposta respondendo ao comunista Miguel Tiago. O objetivo dessas equipas é, de acordo com este antigo responsável pela supervisão, a recolha de informação completa e clarificadora.
Porém, ouvindo quatro reguladores (dois do Banco de Portugal e os presidentes do Instituto de Seguros de Portugal e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, José Almaça e Carlos Tavares, respetivamente) além do ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e da atual titular da pasta, Maria Luís Albuquerque) o que ficou claro foi que, não havendo propriamente uma guerra, existe desarmonia e pouco diálogo entre os vários órgãos de supervisão. Falam muito, mas não entre si, como observou Fernando Negrão, o social-democrata que preside à CPIBES.
Ficou também claro que, tendo o BES/GES, como a generalidade das empresas cotadas, órgãos de controlo e fiscalização interna, códigos de conduta, regras de governo societário, toda uma panóplia de instrumentos para evitar chatices, justificar honorários e ficar bem na fotografia, ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém cheirou o esturro. Foi preciso zangarem-se comadres.
E há ainda os auditores externos, pagos pela empresa auditada e que com certeza também estarão preocupados em terem clientes satisfeitos para os manterem e, se possível, para conseguir com o mesmo cliente mais um contrato chorudo de consultoria. Até que ponto é que essas auditorias são confiáveis? Não tanto pela capacidade técnica, mas por que se criam laços de dependência de familiaridade entre auditor e auditado que paga. Não sou eu quem a formula a questão. Fê-lo Carlos Tavares, presidente da CMVM, na comissão, falando num “mercado de auditoria “quase oligopolista”. E tem toda a razão. Um estudo recente da entidade a que ele preside refere que as empresas de maior capitalização bolsista recorrem a três firmas de auditoria: só a PwC, Deloitte e KPMG prestam esse serviço a empresas que representam 98% da capitalização do mercado português.
O que ficou mais claro neste arranque das audições, que continuarão na próxima semana, é que os mecanismos de supervisão e controlo são extremamente frágeis, o que pode legitima uma série de outras questões: os supervisores terão sido benevolentes em relação ao BES ao ponto de se deixarem enganar?
Todos sabemos que o polícia bom tem de fazer parte de qualquer enredo de qualquer policial que se preze. Mas o polícia mau também é imprescindível e ele tem estado ausente deste filme. À falta dele talvez a Comissão de Inquérito possa desempenhar esse papel, apesar de se tratar de um caso de polícia, embora com ramificações (tentáculos?) políticas.