“Deixe-me, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar”
E aqui estamos outra vez, eu a devorar antibióticos e corticoides a fim de aniquilar gripes e sinusites, insistindo ainda nesta mania de escrever cartas para as cidades onde vivo como se fossem namoradas desavindas de um século antigo.
Já tu estás num momento de melt down, não chove há um mês e vertes lixo e ira pelas costuras mal cuidadas, apresentas-te em sociedade com uma melindrosa maquilhagem, chupas a energia elétrica vorazmente para te manteres acesa, a faturar, mas a sofreguidão da tua ganância leva também a paciência e a paz dos indígenas. Não estás no topo de forma. Tremes das pernas, fechas a cara, pressentes a hesitação daqueles que sempre te quiseram bem, mas que agora se distanciam de ti.
Tenho a certeza que Cartola não te viraria as costas – como já me apeteceu fazer -, e em vez de uma carta escreveria um samba. Mas é ele que toca agora nesta sala, propositadamente, servindo-me de mensageiro. E se canto com ele, como quem bate com a porta – “Deixe-me, preciso andar, vou por aí a procurar” -, também é verdade que a canção tem em mim um estranho efeito reconciliador.
Sempre que me dás música, quero-te de volta.
“Você é mais do que sei, é mais que pensei, é mais que esperava, baby”
Talvez não saibas, mas em Portugal a expressão “dar música” a alguém implica um ato de sedução ou de mentira, algo que te assenta tão bem. Gostas de dar música a quem chega, e não me refiro apenas a essa benção dos teus bons poetas, músicos e intérpretes.
Tim Maia, ser especial e desgovernado como tu, canta enquanto te escrevo, e lembro-me, com um sorriso, de como um dos seus discos tocou repetidamente num apartamento de Ipanema, num verão carioca com amigos portugueses, quando, perante o meu deslumbramento com a cidade, ouvi pela primeira vez a advertência dos locais: “Ser turista no Rio não é o mesmo que morar no Rio”.
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”
Eu não queria falar das chagas que abriste recentemente. Andamos todos cansados de apontar o dedo, tantas vezes incapazes de nos desviarmos do Lado Negro da Força. Mas estive doente, e sabes como a falta de saúde nos amolece, nos faz escrever cartas e pensar na vida. Não te contarei uma história de revolta, apenas de tristeza. Durante a semana em que estive doente, aventurei-me no centro de saúde da Gávea. É um lugar pequeno e mal amanhado, e os pacientes esperam numa fila, sentados, no exterior. Como não conhecia o procedimento das consultas, ajudaram-me de imediato, e conversámos durante três horas, esperando a nossa vez, vendo como os miúdos doentes olhavam, mortiços, para as brincadeiras dos miúdos saudáveis, até que por fim uma enfermeira pediu desculpa porque o médico não iria aparecer tão cedo. Deveríamos regressar depois de almoço. Mas a falta do médico repetiu-se à tarde. Nessa noite, farto de estar doente, fui a uma clínica privada, levei um rombo no orçamento, mas tudo fluiu como se num hotel de cinco estrelas.
Lamento se te irei parecer piegas ou manipulador, talvez estejas demasiado empedernida para ainda te inquietares com estas coisas, mas naquela noite, e nos dias seguintes, não consegui esquecer a mãe com dois filhos, no centro de saúde, perguntando à enfermeira o que iria fazer com as crianças quando soube que afinal não haveria médico o dia inteiro. Ao comentar o caso com amigos, sublinhando a falta de opções – que eu tenho – para a maioria dos cariocas sempre que enfrentam casos de aflição e abandono, mais do que um desses amigos me disse a mesma frase: “Estão entregues a Deus”.
Ponho a tocar Novos Baianos como quem resgata um tempo limpo na voz de Baby Consuelo. Resta-me o consolo de acreditar que há mais deus naqueles violões do que em todas as igrejas evangélicas da Baixada.
“Ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso e o muito, muito que te quero”
Não te vou contar uma história de amargura, mas de gentileza. Dizem que o tema “Carinhoso”, de Pixinguinha, composto em 1917, é uma das canções que os brasileiros mais bem conhecessem, que a maioria já a cantou no duche ou a assobiou na calçada após um beijo. Faço parte dessa maioria. “Carinhoso” irá recordar-me para sempre da minha chegada ao Rio. Assobio-a quando ando de bicicleta em dias solares, usei-a – entre muitos outros estratagemas – para convencer a minha namorada – agora mulher -, a mudar-se comigo para o Rio de Janeiro sem que alguma vez tivesse pisado areias de Copacabana.
Queria contar-te ainda que depois da consulta na clínica privada, que fica no topo de uma ladeira, esperava a chegada do ônibus para descer o morro. Passou um táxi fora de serviço. O motorista, acompanhado da mulher enfermeira que terminara o turno, perguntou se eu precisava de boleia. Era um casal de 30 e poucos anos. Perguntaram-me o que, como estrangeiro, achava do Rio. Comecei a falar das tuas falhas de caráter, mas logo me calei.
Sabes, havia neles um jeito meigo e crédulo de ser. E no gesto de me darem uma carona, na atenção das suas palavras, na sensação de que estavam a começar algo de novo, senti o mesmo afeto que sinto ao escutar “Carinhoso”.
É por isso que te escrevo. Cheguei a casa e pus a tocar uma versão de Paulinho da Viola e Marisa Monte. Ouvi a música várias vezes e quis escrever-te algo bonito. Talvez me aches um pateta sentimental, demasiado enternecido com as pequenas bondades dos estranhos. Talvez continues em velocidade máxima rumo ao debacle sem me prestar atenção. Mas queria que ficasses a saber algo importante – se isso por acaso ainda te interessa. Prefiro mil vezes ser um palerma emocional e escrever-te carinhosas cartas de amor, do que ter de deixar-te, mais uma vez, as malas à porta de casa.