1. João é conhecido por comer dois frangos por dia. Vive na favela do Vidigal, tem cabelo loiro de surfista ou de tenista dos anos 70, bíceps trabalhados em t-shirts sem mangas, e já foi figurante em novelas da Globo. Não é o único estrangeiro no morro que destoa fisicamente dos locais, mas não deixa que eles se confundam.
Há uns meses disse-me: “Aqui sabem que eu sou portuga, não sou gringo”.
Os portugueses sentem-se estrangeiros no Brasil, mas não se consideram gringos. Essa recusa tem menos a ver com o cliché do turista em permanente estado de escaldão, incapaz de ir além de um “Gracias señor, samba!”, e mais a ver com uma proximidade com o Brasil, que nem sempre é recíproca. Seja por causa das aulas de História e uma vida a ver novelas, da MPB e do Axé, da emigração brasileira para Portugal nos últimos 20 anos, a verdade é que os portugueses sabem muito mais sobre o Brasil do que o contrário. Como tal, e porque falamos a mesma língua, o termo gringo seria insuficiente para descrever alguém que sabe imitar os tiques do Sinhôzinho Malta e dispõe de gramática para não ser enrolado por um taxista.
2. O Rio de Janeiro até pode ser a cidade com mais portugueses do Brasil – em tempos foi a terceira no ranking mundial, depois de Lisboa e Paris -, mas aqueles que aqui chegaram nos últimos anos ainda são, algumas vezes, vistos como seres exóticos e distantemente europeus, falantes de uma versão alienígena e engraçada de português, susceptíveis de criar tanta curiosidade como um esquimó tocando cavaquinho numa roda de choro. Um português loiro a viver no morro ou uma lisboeta poliglota, gira que dói e sem bigode, pedalando na ciclovia para encanto dos indígenas, são uma novidade para quem, nas últimas décadas, viu cristalizar-se no imaginário carioca o português dono de botecos ou padarias, comedor fanático de bacalhau, muito trabalhador, por vezes bem sucedido, quase sempre agarrado ao dinheiro, casado com uma senhora hirsuta da terrinha.
3. Sou agora capaz de ouvir-me como os brasileiros nos ouvem. Sei que dizemos “xqueire” em vez de “isqueiro” ou “tefone” em vez “telefone”, sei que uma vez disse “guerrilha” e do outro lado só ouviram “grrrrrrrrr”, ou que se riram de mim com ternura e disseram “que gracinha”, quando me perguntaram se queria uma caipirinha de tangerina e respondi com uma dupla negativa “Não vou dizer que não” – uma cerimónia e um excesso de palavras que contrastam com a descontração carioca.
Seja pela fonética ou pela sintaxe, um português é automaticamente identificado como ser estranho, muitas vezes de fala incompreensível, por aqueles que nunca ouviram o nosso sotaque antes (já me perguntaram se era uruguaio ou francês). Por outro lado, aqueles que reconhecem o nosso lugar de partida pela maneira como falamos, apressam-se a comentar algum parentesco com portugueses, uma visita a Lisboa e, claro, o bacalhau. Mas, qualquer que seja o interlocutor, basta-nos abrir a boca para que algo nos defina, nos exponha, nos faça conscientes de que somos, inevitavelmente, portugueses a toda a hora.
4. Acredito que os portugueses que recentemente se mudaram para o Brasil, dos hippies aos financeiros, dos “Bossa Nova Forever” aos “Estou farto disto”, sentem que estes anos definem, de uma forma indelével, a sua identidade. Não se trata apenas de sair de um país exangue e deprimido, que por vezes amaldiçoamos, mas para onde queremos regressar. Não se trata apenas da distância da família e dos amigos, da certeza de que a geração “mais preparada de sempre” viu fugir o tapete debaixo dos seus pés e alterou os planos para a idade adulta. Isso já está marcado e resolvido na linha da vida traçada na mão.
É o futuro que nos marcará mais ainda. Os portugueses que vivem agora no Brasil já tiveram ou terão filhos aqui. Bebem sucos de goiaba ao pequeno almoço e almoçam feijoada ao sábado. Usam o gerúndio e, gostem ou não, esponjam muito mais do que vocabulário ou culinária. Terão mais anos pela frente antes do regresso. E a verdade é que quanto mais o Brasil se entranha no nosso modo de ser, mais portugueses nos sentimos.
5. No dia em que Portugal jogou na Suécia, não pude ver o encontro. Só soube o resultado horas mais tarde. No dia seguinte, era feriado no Brasil. De manhã cedo, comprei o jornal e fui tomar o pequeno almoço no bar de sucos de sempre, onde o Rei da Gávea, também conhecido como Baixinho, dispara o meu pedido antes que possa dizer-lhe “Bom dia.” Durante algum tempo, o Rei julgou-me italiano. Bastou uma conversa sobre futebol para que se resolvesse o equívoco. Na manhã pós-vitória e hat trick, mostrei-lhe a primeira página do jornal com uma foto de Cristiano Ronaldo de peito feito. O título citava o capitão português após o golo: “Eu estou aqui”.
Não sei qual a verdadeira intenção dessas palavras. Mas, naquela manhã, “Eu estou aqui” tinha muito mais a ver comigo do que com futebol – uma afirmação de identidade, um ponto de honra, da mesma maneira que jamais digo ou escrevo “fato” em vez de “facto”. Eu estou aqui, exatamente aqui, com 37 anos, sem data certa de retorno como tantos outros portugueses. E a satisfação com que mostrei o jornal e me apeteceu dizer, durante todo o dia, “Eu estou aqui”, era muito menos patriotismo de bandeira desfraldada e muito mais consolo de saber que, por mais anos que aqui viva, e a esta altura do campeonato, serei sempre um portuga no Rio de Janeiro.