São três da tarde de uma sexta-feira normal. Entre as risadas das minhas filhas, olho para o telemóvel e vejo uma mensagem da escola da minha enteada a dizer que estavam em lockdown por ordens da polícia neozelandesa devido a um tiroteio na cidade.
Quando li pensei que fosse um assalto que tivesse corrido mal ou algo do género, e que a polícia estivesse simplesmente a seguir protocolo e a tomar precauções calculadas. Isto porque, nos meus 10 anos de residência em Christchurch (e no país), nunca houve uma situação que fosse preocupante e pusesse a vida dos residentes em risco (sem contar com os terramotos de 2011, obviamente).
Falei ao telefone com a minha enteada, que disse que tinha ido para casa mais cedo, e segui sem dar mais importância ao assunto. As minhas pequenas tinham-me pedido para ir à biblioteca local para irmos buscar os livros que tínhamos reservado e não pensei duas vezes.
Quando chegámos à biblioteca, comecei a ficar nervosa. Não estava quase ninguém na rua e quando nos aproximámos das portas, estavam fechadas. As minhas filhas viram algumas pessoas pelo vidro e perguntaram-me: “mamã, porque não podemos entrar?” Os funcionários apontaram para os sinais que diziam que a cidade estava em lockdown por ordem da polícia e fiquei sem saber o que dizer às meninas.
Entretanto, começaram a chegar mensagens de amigos e família a perguntarem se estava bem e foi aí que percebi a dimensão do evento. Amigos com filhos na escola, sem saberem quando os poderiam ir buscar, amigos fechados nos seus escritórios, em restaurantes, em lojas… Uma cena Orwelliana que não tem lugar num sítio como Christchurch. Até à sexta-feira passada…
Por norma não estou online quando estou com as minhas filhas para poder estar 100% presente, mas os nervos imperaram. Foi com incredulidade que li a notícia de que um terrorista neonazi se tinha deslocado a duas mesquitas e matado 50 pessoas. E, pior, que transmitiu os primeiros 17 minutos do ataque nas redes sociais, depois de ter publicado o seu manifesto fascista.
Um ataque desta natureza, com este nível de violência e baseado neste tipo de ideologia faz sentido em poucos lugares do mundo, mas ainda menos na Nova Zelândia.
Os neozelandeses são um povo acolhedor e a vida por cá é pacífica, segura e pacata. Nem sequer há zonas que considere que deva evitar, o que é raro em qualquer cidade do mundo.
O racismo está presente em todas as culturas, incluindo a neozelandesa, mas nada que indicasse que reuníamos as condições ideais para este tipo de crime.
Quero deixar claro que esta atrocidade não representa este país e o seu povo. Demonstra, sim, a vulnerabilidade de um mundo que dá voz, plataforma e poder à pequena percentagem de seguidores de ideologias desumanas, retrógradas, baseadas no preconceito, no medo e no separatismo. A isto, nem o paraíso está imune.
Talvez mais que o atentado em si me choquem os comentários nas redes sociais onde pessoas pelo mundo inteiro (incluindo Portugal) justificam e normalizam o ataque como uma reacção legítima aos ataques perpetrados pelo ISIS, sugerindo que a comunidade muçulmana colheu o que semeou. A ignorância, ódio e preconceito por detrás de comentários deste género dão-me a volta ao estômago e fazem-me passar noites em branco.
Estes comentários são racistas e xenófobos. Ponto final. Se este crime tivesse sido cometido por muçulmanos, os mesmos comentadores não teriam hesitado em condená-lo e oferecer solidariedade às vítimas. Mas a cor branca da pele ainda garante um passe de desculpa nas mentes desinquietas e intolerantes do mundo.
Os comentários que fazemos e o conteúdo que consumimos online têm consequências reais; ou dão ou tiram poder a extremistas. Ou contribuem para o ódio ou para a tolerância. Somos nós os responsáveis diretos pela partilha das ideias e valores que se espalham pelo mundo virtual, boas e más. Está na altura de levarmos essa responsabilidade a sério.
Está também na altura de exigirmos que as redes sociais façam o seu papel e assumam responsabilidade pelo conteúdo que se propaga nas suas plataformas, mas isso merece crónica própria.
A outra responsabilidade, da qual parecemos lavar as mãos, é a maneira como votamos e o sistema político que toleramos. Votamos em políticos com discursos separatistas e populistas. E toleramos uma imprensa que explora de bom grado este tipo de discurso, que consumimos sem questionarmos a sua validade, e permitimos que contamine as nossas mentes diaramente.
A responsabilidade principal? A de distinguirmos o mundo real do virtual. De percebermos o impacto e a ironia de um imigrante australiano cometer um crime nacionalista contra imigrantes como ele, num país que não é o seu. De percebermos em que medida as nossas conversas e acções diárias ajudam a fomentar a desumanização de grupos inteiros de seres humanos, ainda que as nossas vidas reais nos mostrem a verdade; a de que a esmagadora maioria das pessoas que nos rodeiam são decentes, independentemente da sua cor, credo ou nacionalidade.
Cada preconceito que carregamos, por mais pequeno que seja, alimenta o separatismo, a desconfiança e a ignorância presentes a nível global. A neutralidade não existe.
Lembremo-nos desta verdade inquestionável: que a percentagem de seres humanos sem escrúpulos é mínima e que o mundo é habitado maioritariamente por seres humanos que fazem o bem. A diferença está no tempo de antena que cada grupo recebe. E a conivência da qual todos nós somos culpados.
O extremismo não nasce num vácuo. Nasce com o nosso consentimento diário.
Um dos meus melhores amigos disse o seguinte: “são mais as pessoas que amam do que as que odeiam, só que as que expressam o seu ódio fazem-no com convicção.” Adiciono que está na hora de escolher o lado do campo com clareza.
E, se fazemos parte da maioria branca, está na hora de verificarmos até onde estamos dispostos a sacrificar a união e a verdadeira inclusão de cada ser humano que compõe a população das nossas comunidades, em troca dos privilégios que a cultura corrente nos garante.
O antídoto para estes cancros da condição humana é o amor em ação. Amemos com convicção, todos os dias, com pequenos gestos. Começando pelas nossas comunidades, físicas e virtuais. Sobretudo nas conversas e atitudes que toleramos. Nota importante: NÃO HÁ piadas racistas inocentes.
A comunidade muçulmana em Christchurch e na Nova Zelândia procurou refúgio neste país dos atos de extremismo de que são alvo no seu próprio território. Por cá, a única coisa que lhes mostraremos é amor, compaixão e solidariedade. Porque é disto que o povo neozelandês é feito. Depois, em verdadeiro espírito neozelandês, virão as conversas difíceis, lideradas com amor pela Primeira Ministra Jacinda Ardern. O resto do mundo que acompanhe. #Teamhuman all the way.