Por razões diversas estive por estradas europeias durante a segunda metade deste Mundial. Os primeiros jogos tive a oportunidade de os ver em Lisboa (Portugal contra a Espanha, Marrocos e Irão), mas depois, uma vez que conduzi de Lisboa para Budapest, foi galgar quilómetros entre jogos, e apontar para bombas de gasolina para apanhar os finais ou os prolongamentos.
Por casualidade de calendário, não vi nenhum jogo espanhol em terras de Quixote, nem franceses em terras gaulesas. Por dois dias perdi o Suíça x Suécia em Zurique (vi a Espanha ser eliminada), e cheguei à Alemanha já em plenos oitavos-de-final. No lado alemão do Lago Constanza vi Portugal a jogar bem e ser eliminado, e a maioria dos oitavos em cafés perdidos em paraderos e pousadas, wifi de bombas de gasolina, resumos ao fim dos dias. Quartos e meias estava já em Budapest, onde o mundial só tinha um sítio: Szabásgág Ter, e os telões que sagraram Portugal campeão da Europa dois anos antes. Aí vi o Brasil sair da copa, o chato Inglaterra x Suécia e o excitante Croácia x Rússia. Nem me lembro de ver a França jogar. Depois desses penalties cardíacos entre organizadores e ex-jugoslavos, que iam matando amigos de ambas as cores, decidi tentar ver um jogo com locals, beber das suas ansiedades, do êxtase colectivo e sentir a sua maluquice. Recordei-me do que passámos em Budapest, há dois anos, em frente ao monumento soviético celebratório da libertação de Budapest por tropas do Exército Vermelho em 1945. O stress, os nervos, o feeling, e depois aquela explosão de alegria quando já esperávamos por mais uns penalties (obrigado Éder). Éramos pouco mais de 50, e acreditem quando digo que pintámos a rigor Budapest de vermelho e verde, imaginado como deveriam estar nessa altura as ruas de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Timor, Luanda, e por esse mundo fora. E a sorrir com pele de galinha bem eriçada ao ver as imagens da festarola nacional, as cores de Portugal espelhadas em todos os cantos onde se sente a paixão da lusofonia, já para não referir a apoteótica recepção na Fonte Luminosa.
Decidi tentar ir a Croácia se passassem à final. Era a única opção, estacionado que estava em terras magiares, pois França, Bélgica ou Inglaterra eram destinos distantes, e honestamente demasiado concorrentes da selecção lusa para me juntar a tais celebrações. E afinal, de Budapest ir à Croácia são um par de horas até à fronteira, e uma vez lá o conjunto de possibilidades são enormes (da Ístria à Dalmácia, ilhas, Zagreb ou outros vilarejos). Estava decidido. Para mais, tenho um bom par de amigos croatas, gente com quem me fui picando durante o Mundial, e a quem acusava de estarem a seguir a cartilha de Portugal no Europeu de 2016: de empate a empate, prolongamentos e penalties até à vitória final. E no fim a França, como tem de ser. Estava decidido. Iria à Croácia se passassem à final. E como limparam, uma vez mais em extra-time, a Inglaterra, havia que cumprir a promessa. Restava saber onde, pois apesar de pequeno país a sua forma de croissant oferece bastante variedade. De entre as melhores hipóteses identifiquei a Ístria, de longe a minha zona favorita nestas bandas (mistura de Alentejo no sul e de Toscânia no norte), e talvez Pula ou Rijeka; Dalmácia, qualquer vila pelos lados de Split; uma ilha (tinha amigos em Krk) ou algo mais próximo de casa, qualquer coisa ao pé da fronteira. Por coincidência, uma boa amiga minha é de Varaždīn, hoje cidade média a seguir ao Balaton, mas em tempos capital do Reino Croata. Restava decidir. E se uma ida à praia para colocar os níveis de sal na pele em ordem era algo bem atraente, as noticias sobre o trânsito nas autoestradas e as filas de quilómetros nas portagens e nas estradas junto às praias, verdadeira conjugação de ponte 25 de Abril em início de quinzena e de 125 em pleno mês de Agosto, já o eram menos. Complementarmente, a proposta de Varaždīn, onde nos esperava genuíno BBQ balcânico, Rakjia caseira e ambiente genuíno (leia-se sem invasão turística, e com população maioritariamente autóctone), parecia cada vez mais à medida do desejado. Para mais, sendo junto à fronteira, estávamos a falar de uma ida de Lisboa ao Algarve, e não uma estopada de 500 km. Assim fiz. Arranquei sábado.
Varaždīn, cidade quasi-milenar (primeiros registos de 1181), reforçada defensivamente pela Ordem do Hospital para conter as investidas otomanas quando pelo nosso burgo andávamos às descobertas, posteriormente evangelizada por jesuítas (que ali assentaram escola e barroco), recebeu-me com uma boa grelha de Šišćevapi e pljeskavica, mas estranhamente sem um exagero de bandeiras. Pelos vistos o Scolari não passou por aqui. Um ambiente discreto que se transformou num garrido xadrez vivo vermelho e branco no dia seguinte, o da Grande Final. Não fossem os tons de azuis, quase parecia ambiente na Luz em dia de derby. E como noutras recentes histórias benfiquistas, talvez tenham sido esses mesmos tons de azul a agoirar o resultado final. Enfim, outras histórias da bola. Regressemos a Varaždīn, onde depois de mais um churrasco, fomos para o centro da vila, agora já devidamente engalanada para acolher uma final do campeonato do mundo, com a equipa da casa a jogar a final. Palco montado com banda a malhar, telão gigante para acolher devidamente, praças e ruas cheias de cores, bandeiras, gorros de polo aquático (o outro desporto rei local), T-shirts, vestidos e camisetas, e – não estivéssemos nos Balcãs – tochas com as cores da bandeira nacional colorindo o hino nacional. Um ambiente incrível. E uma energia electrizante no ar. «Ajmo vatreni! Hrvatska», cantava-se repetidamente de pulmão cheio. «Idemo Hrvatska».
Não sei se foi pelo ambiente vermelho e branco, mas a verdade é que dei por mim em pulgas e saltinhos. Bora lá, pensei eu, apresentando-me aos locais como português, assim portador da poção mágica de como bater franceses em finais. «Quem é o vosso Éder», ainda cheguei a perguntar. Mas infelizmente não houve Éder para ninguém, ou pior, uma vez que o avançado croata mais reputado acabou por marcar duas vezes, a primeira na própria baliza. A estratégia tuga não resultou. E a festa acabou cedo, apesar da excelente prestação da equipa de Luka Modric, em especial na primeira parte (onde com um remate feito à baliza a França cinicamente marcou dois golos, um com tal o avançado croata, outro com o VAR). Sem stress pensaram muitos. Um pequeno país chegar a uma final do mundial era já feito que baste. Porra porra porra, pensaram outros. Já aqui chegados, mais valia a pena termos levado o caneco. Qui ça poderíamos ter sido mais como os tais portugueses, que numa Paris já com luzes tricolores encomendadas para a Torre Eiffel, meteram a viola no saco, e por um dia baixaram a bolinha a quem se habituaram a menosprezar. Não o quis assim o destino. Apenas que aquando da consagração de Modric como melhor jogador da copa começasse a chover torrencialmente. E que no meio da borrasca sobressaísse, vestida a preceito com rubras cores, a Presidente da selecção vencida, indicando-nos onde deixar o coração nesta competição. Uns ganham, é verdade. Mas há quem perda e perdure. Como esta belíssima equipa de futebol.
O pós mundial já se sabe: festarola em Bruxelas, Zagreb e Paris. Novos nacionalismos, escreverem muitos jornais. «tous ensemble», diziam na Bélgica, e da sua equipa multicolor que simbolizava o estado emotivo da complexa Nação. Aqui destaque para Lukaku, homem das 7 línguas, entrevistado num belíssimo português para comprovar apetências. Ou o «Black, Blanc, Beure» redux, belíssima homenagem a uma outra equipa francesa (de ‘98) que substituiu as cores da bandeira para identificar a origem africana, magrebina e europeia dos seus jogadores. Todos pontos válidos de integração positiva de imigrantes de primeira e segunda geração nesta europa hoje a querer voltar a abrir as suas piores páginas da história (basta estes dias andar por Budapest para assistir ao desmantelamento impune das instituições liberais e dos parâmetros da democracia multipartidária competitiva). Restou-me nesta aventura apreciar o impacto deste mês louco no nacionalismo croata, não me parecendo que estas questões de integração tenham sido referenciadas em torno de questões de pele, até porque por estas zonas o que varia é a origem étnica e religiosa. E por estas bandas se há norma é a intensa mistura de várias origens eslavas, e proveniências religiosas. O sangue aqui é muito misturado, como tem de ser acrescento. E mesmo que se procure aqui e ali colocar tónica na excepcionalidade etno-cultural (como na Hungria do senhor Orbán), a verdade é que, e este mundial o voltou a provar, é da positiva integração de vários povos, diferentes origens, que se consegue construir uma identidade nacional que verdadeiramente encaixe as tradições, os costumes e raízes etno-culturais de cada povo, nação ou Estado, pois pensar que se consegue viver isoladamente, sem referencias ou contactos exteriores, é não somente não ter acesso crítico à sua História como não respeitar o passado (como aqui já referimos no exemplo húngaro). E tomar o Mundial como expoente de diversidade e exemplo de integração (através do desporto), só acrescenta à vontade de estar ligado à televisão cada 4 anos, galgar quilómetros organizando a próxima paragem para a hora do próximo jogo e, se e sempre que possível, assistir às partidas junto de quem partilhe esta visão integradora e identitária, seja nas praças de cidades sem equipas a jogar, seja pelas ruas coloridas de quem ambiciona mais 90 minutos.
Parabéns França. Parabéns Croácia. Parabéns Rússia. Venha esse Euro 2020, o primeiro verdadeiramente Europeu, pois será jogado e organizado em cidades, não países.