Lucusse, Província do Moxico. A placa de metal onde o corpo de Jonas Savimbi foi transportado em Fevereiro de 2002, depois de morto pelas Forças Armadas Angolanas, está encostada a uma árvore logo à entrada de Lucusse. O objecto passa despercebido para quem não sabe da história. Numa das primeiras visitas ao município, foram várias as câmaras fotográficas que apontaram para aquela “maca” torta, com a palavra “Savimbi” pintada com tinta desbotada, que só por si não conta nada. As gentes da terra avisaram logo: não toquem na placa que traz feitiço. Falaram em português, mas talvez não tenha sido suficientemente claro para um dos estrangeiros-lusófonos- da comitiva, que imediatamente pediu que lhe tirassem uma foto agarrado a uma placa de metal encostada a uma árvore. Não sei o que lhe aconteceu depois, mas isso pode explicar muitas das atitudes menos sábias do dito prevaricador. Antes feitiço que burrice.
Savimbi, o histórico líder da UNITA, talvez compreendesse as gentes da terra. Segundo contam, ele próprio fazia-se acompanhar dos seus próprios feiticeiros e respectivas magias, inclusive no campo de batalha. Para defesa e protecção extras, dizem que carregava vários amuletos no corpo e nas roupas e que não comia em qualquer sítio, com medo de ser envenenado (e para isso não é preciso ser-se bruxo para adivinhar, como Januário, mais abaixo, pode confirmar). Ou também pode ter sido tudo invenção das más-línguas.
Embondeiros, Angola. A árvore onde descansa a maca de “Savimbi” não é um embondeiro, mas podia bem ser, já que encaixaria na perfeição neste cruzar de histórias de (des)encantar. Atravessaram séculos, milénios até, inspirando lendas, contos tradicionais e crenças. Diz-se do embondeiro que está de cabeça para baixo, com os ramos enterrados na terra e as raízes (ramos) viradas para o ar. Árvore considerada sagrada e sepultura de espíritos humanos. Os crentes não hesitam em afirmar “Se uma pessoa comer a sementes molhadas do embondeiro terá protecção contra os crocodilos, mas se uma pessoa se atrever a arrancar uma flor da árvore, morrerá devorada por um leão”.
Chinguar, Província do Bié. António Paulo, viúvo com cinco filhos, conseguiu casar de novo. Parece tarefa banal, mesmo para quem não deve muito à beleza e ao bom feitio, mas em terra de crença feiticeira, não há assim tantas noivas a confiar a sorte a alguém que já “matou” a mulher. Talvez tenha a ajudado o bom pé de meia do noivo e o facto da nova esposa ser de Luanda, mais ligada à fé do pragmatismo. “Para viúvo enfeitiçado saiu-lhe a sorte grande”, ouvi de um outro mais-velho.
Camanongue, Província do Moxico. Tinha menos de 15 anos quando engravidou do namorado. A tenra idade e a falta de cuidados podem ter ditado a morte da jovem mãe e do bebé na hora do parto. Mas este é um palpite que não colou na comunidade, onde o avô foi acusado de ser um feiticeiro e de ter provocado a morte da neta com os seus feitiços. Depois da acusação, a comunidade espancou o avô e deu-lhe a beber álcool puro preparado com umas folhas e outras mezinhas até o velho alucinar. Depois, arrastaram o avô à volta da aldeia à busca dos espíritos escondidos. “Estão aqui atrás da árvore? E ali, no fundo da cacimba?” Encontrando ou não a localização do feitiço, a sina do cota é normalmente a mesma: abandonado e/ou expulso da aldeia. Viver com um bruxo? Cruz Credo!
(É alarmante o número de idosos acusados de práticas de feitiçaria por parte dos seus próprios familiares, resultando em discriminação, isolamento, expulsão da comunidade ou mesmo em violência e morte.)
Dundo, Província da Lunda Norte. Dezenas de refugiados congoleses são treinados para mobilizar a comunidade na prevenção de doenças, abusos ou violência. Aprendem como influenciar e convencer os compatriotas, fugidos da vizinha República Democrática do Congo depois de terem sido apanhados no fogo cruzado entre forças governamentais e milícias. Discutimos quais os comportamentos e normas sociais que têm que ser alterados para reduzir os riscos de doenças, proteger crianças de abuso ou promover a convivência pacífica. Mal viro as costas, contam entre si histórias de como várias pessoas das milícias eram invisíveis e de como as balas atravessavam os seus corpos sem deixar rasto. Depois seguem com o trabalho, utilizando argumentos racionais e científicos sobre malária, cólera, mosquitos, tráfico de crianças e prevenção de outros mambos.
Benguela, Província de Benguela. Emanuel não esquece os tempos de miúdo quando, antes do início do jogo de futebol, algumas equipas adversárias lançavam farinha ou outros pós suspeitos junto à própria baliza, enquanto os respectivos guarda-redes faziam umas danças possuídas de gestos e movimentos descoordenados, como que tomados por seres do além. Um bicho-de-sete-cabeças para Manuel e os colegas de equipa que acreditavam que ali tinha sido lançado feitiço e tremiam que nem varas verdes quando se aproximavam da grande área adversária.
Kuito, Bié. Cuidado para não apanhar uma tala, pois os populares juram a pés juntos que não há solução médica. A poção mágica está nos segredos dos deuses, só se sabe que é preparada com água e com algumas folhas. Depois o líquido é lançado no chão, muitas vezes à porta de casa do alvo de vingança. Se o visado, ou algum familiar que por azar esqueceu-se de algo em casa, meter a pata na poça (literalmente), i.e., apanhar a tala, pode ficar com a perna inflamada, às vezes provocando gangrena. Como o hospital não cura o que não tem explicação, as vítimas recorrem ao tratamento tradicional. Se não morre da doença, morre da cura.
Uíge, Província do Uíge. Januário comprou uma garrafa de vinho para ir bebendo aos finais do dia no hotel de três estrelas, onde estava hospedado durante uma missão pelo norte de Angola. Porém, todos os dias lamentava que não podia abrir a garrafa se não bebesse tudo de uma só vez. “Como assim? Não podes beber um pouco e deixar no quarto até ao dia seguinte?”, perguntava eu na minha inocência. “Claro que não! E deixá-la aberta no frigorífico? E se me envenenam?”, murmurava, não fosse as paredes terem ouvidos. “Mas por que razão iriam fazer mal a um desconhecido?”, insisti. “Por inveja. Nunca se sabe.” Pois, nunca fiando.
Um destes dias, li numa notícia que nove dos 13 embondeiros mais velhos em África, com cerca de dois mil anos, morreram na última década. Apesar de não estar ainda provada a causa da morte, investigadores apontam para as alterações climáticas. Januário diria que é feitiço. Eu cá não acredito em feitiços, mas que existem, existem.
*mam·bo
[Angola, Informal] Coisa (ex.: não curto esse mambo; temos de fazer uns mambos juntos).
[Angola, Informal] Problema (ex.: qual é o mambo?).