Era uma mulher com força de homem, li algures de um historiador, enquanto pesquisava sobre a Rainha Ginga (ou Nzinga, Njinga, Jinga ou Zingha). O que terá de feito esta mulher para ser injuriada dessa maneira, pensei.
Rainha do Ndongo e de Matamba, nasceu por volta do ano de 1580 e morreu em 1663. Lutou mais de 30 anos contra a ocupação portuguesa e o comércio de escravos nos seus reinos. Mas vamos por partes.
Dona Marcelina. A vizinha do quinto andar anda por aqui há 30 anos. O marido já se foi e os filhos fizeram vida por outras bandas. Cuidou de todos. Deu tudo de si. Agora, já nos seus quase 80, vive sozinha com vista para a marginal de Luanda. Conhecemo-nos enquanto cumprimentávamos a senhora das frutas que todos os sábados sobe os seis andares com a cesta equilibrada na cabeça. Agora que Dona Marcelina sabe que estou por aqui, bate-me à porta dia sim, dia não. Outras vezes, espera-me em frente edifício, enquanto falo com os rapazes da rua. “Olha que muitos deles são gatunos. Antes alguns andam bem, mas meteram-se na droga e perderam-se. Aqui o João é dos poucos que se aproveita. É médica?” Não, nem percebo nada de saúde. “Ah, mas veja-me aqui estas aftas (enquanto puxa sem medos nem vergonhas o lábio para baixo).” Perante tais manchas gigantescas, pesquiso na internet para ver se há alguma explicação que console a vizinha. “Olhe, quando estiver com vagar, passe lá em casa. Estou muito sozinha. Já não sei como me entreter, nem tenho ninguém com quem conversar”. Alguém para partilhar uma vida que esteve cheia de tudo e agora com sabor a nada.
Ginga. O pai, rei Ngola Kiluanji Kia Samba, cujo título “Ngola” terá dado origem à palavra Angola, resistiu na segunda metade do século XVI à ocupação do território pelos portugueses que rápida e perigosamente se aproximavam do seu reino para a captura de homens para o tráfico de escravos, um dos muitos (ricos) interesses dos invasores. Com a morte do rei, um dos filhos, Ngola Mbandi, tomou o trono e adoptou uma nova táctica, enviando a sua irmã Ginga a Luanda em 1622 para negociar com o governador João Correia De Sousa. Um acordo foi alcançado: paz e amizade mútuas e o respeito pela soberania do reino de Ndongo, em troca da conversão ao cristianismo. Ginga foi baptizada com o nome de Dona Ana de Sousa, tendo como padrinho o governador português.
Tia Rosa. Acabadinha de fazer 50, Tia Rosa, está aí para todas as curvas. Arrasta multidões, monta e desmonta palcos, coloca jovens formandos de ouvido em riste enquanto transmite saber, assim como é a principal dinamizadora dos trabalhos de grupos. Fez a carreira toda na acção social de um município do norte de Angola. Trabalha numa sala sem luz, sem computador, só uns sofás e uma secretária roçados pelo tempo. Nem precisa de mais, pois Tia Rosa não é feita para estar sentada. A sala faz parte de um edifício onde vivem crianças abandonadas ou com problemas com a justiça. Todas têm um respeito pela Tia Rosa. Sentimento recíproco. Tia Rosa só entristece quando pensa no destino destes pequenos que sem culpa foram atirados para a rua pela vida. Agora, vivem ali, com polícia à porta, mas de portão aberto. Tia Rosa põe o olho em cada um, tenta que não se desviem e procura famílias que os acolham, que ali não é vida para ninguém. Ela, com filhos já feitos, e coração grande, não resistiu a duas crianças que foram abandonadas pelas mães. Adoptou duas e trata-as como seu sangue. Ao chegarmos à sua casa, chamou-as, e ao ouvir aquela voz, elas vieram logo ao portão e correram de braços abertos para o corpo da mãe.
Dona Ana de Sousa. A paz foi breve, assim como a conversão católica. Os Portugueses estabeleceram alianças e comércio com chefes locais, criando a instabilidade no reino e retomando os ataques contra o Ndongo. Com a morte do irmão, em 1624, Ginga tornou-se rainha. Impõe a sua autoridade aos chefes locais e conquista o reino vizinho de Matamba. Passou a comandar a resistência à ocupação de Ndongo e Matamba e renegou a fé católica. A táctica de guerra e de espionagem, as qualidades como diplomata, a capacidade para tecer múltiplas e estratégicas alianças, permitiu-lhe opor resistência aos projectos coloniais portugueses.
“Chefa” Maria. Lidera um departamento de promoção de saúde no norte de Angola. Há anos que sabe de cor as formas de transmissão de cólera, marburg (doença hemorrágica semelhante ao ébola), pólio, malária. E já lutou contra todos. E vacinou milhares de crianças. De metro e meio, e voz firme, coloca milhares de jovens a mobilizar uma cidade, uma província inteira. Várias vezes, demasiadas, recebe as críticas dos colegas da saúde, maioritariamente homens, que, várias vezes, demasiadas, a interrompem sem modos em reuniões de coordenação, apinhadas de chefes e chefinhos e doutores. Não cala. Aceita por uns minutos, respira fundo, e em público ou já no gabinete no frente-a-frente com o chefe, diz que não gostou e relembra o trabalho sem fim e ingrato de um batalhão sob o seu comando que de porta em porta, sob o calor e a chuva do norte do país, tenta influenciar uma população inteira a mudar comportamentos que duram há décadas. Porque sempre foi assim. Porque já os bisavós já faziam assim. Mas Maria e o seu batalhão de voluntários não desistem. Continuam de porta em porta, e a mudar comportamentos que salvam vidas.
Rainha Ginga. Foi também com a ajuda das forças de Ginga que os holandeses conseguiram ocupar Luanda, entre 1641 e 1648. A rainha conseguiu várias vitórias contra as tropas portuguesas e passou a ser vista como uma alternativa à escravidão, tendo acolhido milhares de escravos em fuga a quem devolveu a liberdade. Em 1659, assinou um novo tratado de paz com Portugal, o que lhe permitiu reinar com uma certa paz até à data da morte, em Dezembro de 1663, já ultrapassados os 80 anos.
Dona Celeste. Empregada de limpeza há vários anos. Um dia ousou responder e fazer peito a um grande chefe. Sem medos. Na certeza que ninguém estava a escutar, o grande chefe foi implacável na resposta, agressiva e em forma de gritos de superioridade e desrespeito. Gritou sem piedade perante os pedidos de desculpa de Celeste. Mandou-a embora daquele local para sempre. Atrás de Celeste, vive uma família que depende daquele magro salário. Nem assim, o grande chefe mudou de ideias. Felizmente, Celeste não estava sozinha. Outros olhos e ouvidos, assistiram a tudo. E queixaram-se. Mesmo que isso possa significar o fim destas outras carreiras.
Rainha Ginga. Resistindo durante quase 40 anos à ocupação colonial e ao comércio de escravos nos seus reinos, Ginga tornou-se um símbolo de luta contra a opressão, passando, por isso, a fazer parte de umas das (muitas) riquezas históricas e culturais de Angola. Terá também inspirado religiões de origem africana, ao ponto de se dizer que está representada no Vodu do Haiti e no Candomblé do Brasil.
Mama Justine. Fugiu do Congo, da região de Kasai, no ano passado. Fugiu porque as milícias mataram a filha e o marido. Ninguém lhe contou. Ela viu tudo. A filha assassinada, caída a seus pés. Fugiu e só parou num campo de refugiados no norte de Angola. Conheci Mama Justine por acaso, enquanto lhe perguntava inocentemente onde estava a o resto família. Sem apetite para comer, todos os dias colocava o colete de voluntária e uma força camuflada em corpo magro e frágil e ia de tenda em tenda explicar aos compatriotas como prevenir-se da cólera, como proteger as crianças- as filhas dos outros- de doenças, de tráfico, abuso, da morte. Apanhou paludismo, sofreu várias diarreias, foi agredida por um dos supervisores de voluntários, bêbedo e cobarde. Mas nunca faltou ao trabalho. Sem essa missão, não tinha mais razões para se levantar todos os dias. Para proteger as filhas dos outros.
Gingar. Na língua portuguesa, o verbo gingar refere-se a um movimento corporal, com “origem obscura”, como assinalam vários dicionários de referência. Eu prefiro uma outra explicação, de fonte não científica: “Gingar: Em sentido figurado, o verbo evoca a leveza perante os obstáculos, nomeadamente nas negociações, referindo-se à rainha Njinga [Ginga].”