Pré-aviso: este é um texto longo
No próximo dia 8 a Hungria vai a eleições gerais. E a julgar pelos principais temas da campanha, em especial os provenientes do campo governamental, poderíamos facilmente nos convencer que os magiares são governados hoje por um ‘Primeiro-ministro iluminado’, que ameaça que um dilúvio bíblico descerá na planície da Europa Central caso não seja reeleito, e promete a quem queira ouvir tempestades dantescas para a oposição depois de terminado o período eleitoral.
Pensará talvez o leitor que começo este texto com um exagero, talvez afeto a um sentimento hiperbolizado de influência litúrgica, contaminado por leituras maniqueístas tão ao sabor dos tempos pascoais que acabámos de celebrar. Mas, como dizia o outro, olhe que não, olhe que não, não há exagero nenhum. Pois hoje na Hungria, o que poderíamos esperar ser uma campanha eleitoral competitiva, multipartidária, com debates entre candidatos, normalizada, e assente em regras democráticas dentro do espectável de um país de membro de pleno direito da União Europeia, tem dado motes de guerra fratricida entre as suas várias partes, demasiado envolvidas em múltiplas guerras-civis, por enquanto restringidas aos patamares políticos. Expliquemos.
A Situação
As origens da actual situação política (e constitucional) húngara encontram-se nas eleições de 2010, altura em que 52% dos votos granjearam ao Fidesz 263 dos 386 deputados, e uma maioria supra-constitucional de dois terços. A justificar esta estrondosa vitória, entre outras razões, encontra-se a debalce do partido socialista / MSZP (que governara entre 2002 e 2010) e o caminho percorrido pelo Fidesz na oposição (transformando-o de partido liberal pró-europeu num partido conservador nacionalista). A maioria parlamentar constitucional explica-se pelas características do sistema eleitoral húngaro em vigor em 2010. Acresce a estes factores a leitura desenvolvida pelo Fidesz dos resultados de 2002 e 2006, altura em que dividia mais de 80% do eleitorado com os socialistas, mas era consecutivamente arredado da governação (em 2002 elegeram mais deputados mas os socialistas governaram em coligação pós-eleitoral, em 2006 apesar de um maior número de votos totais, elegeram menos deputados que os socialistas, sendo novamente relegados para a oposição).
Durante este largo período na oposição (2002-2008), como detalhadamente exposto neste longo ensaio de Béla Greskovits, o Fidesz, que durante a governação de 1998 a 2002 tinha iniciado a substituição da sua matriz jovem e liberal para uma conservadora e nacionalista, já com alguns toques de autoritarismo (tentativa de ocupação do aparelho estatal, centralização da acção governativa e menosprezo a oposição), irá redesenhar a sua rede social de apoio através de uma apurada reconfiguração das relações entre o partido e um conjunto, selecto, de movimentos cívicos, nomeadamente de cariz rural, religioso e nacionalista. Para este fim, o Fidesz irá organizar centenas de eventos dispersos no território húngaro (no seu sentido lato, pois um dos targets foram as comunidades étnicas húngaras nos países limítrofes), uma espécie de Estados Gerais que servirão para recrutar novas bases e quadros intermédios, e idealizar uma nova aliança com a sociedade civil que permitisse operacionalizar cerca de 3 milhões de eleitores. Primeiro no campo e em pequenas cidades, depois, e lentamente, entrando em Budapest.
Com esta base de apoio consolidada, quando finalmente de regresso ao poder, em 2010, e com maioria constitucional, Viktor Orbán não perderá tempo a construir uma adequada arquitectura institucional que lhe permitisse colocar em curso um bem elaborado plano de assalto às instituições públicas, agora com peso constitucional. E assim, sem qualquer consulta popular ou processo de negociação político, Orbán deu inicio a uma profunda reforma constitucional, dotando a Hungria da sua primeira constituição verdadeiramente livre e nacional(ista), uma vez que as anteriores experiências constitucionais haviam sido a efémera República Socialista Húngara de Béla Kum (1919), e depois o constitucionalismo de inspiração soviética que perduraria de 1949 até 2011. A transição de 1989, recordemos, não produzira novo texto primordial, mas revisões constitucionais tão extensas que se dizia como piada que o único artigo que se manteve dizia respeito a Budapest ser a capital (em todo o caso, a Hungria foi o único país do Bloco de Leste a escolher este caminho, como já havia sido o único país no contexto europeu a não se constitucionalizar no período entre guerras, aparte da experiência citada de Béla Kun).
O novo texto constitucional, em resumo, iria consagrar uma matriz de governamentalização institucional, de matriz conservadora, etnocêntrica e nacionalista. Neste sentido, instituições como o Banco Nacional, o poder judicial, os media passariam a estar sobre controlo (e tutela) do governo, transformações que na opinião de muitos destruíam o necessário equilibro de checks and balances, colocavam em causa o Estado de Direito e um conjunto de liberdades fundamentais, todos imperativos morais e formais em sistemas democráticos de matriz europeia. Estas criticas, juntas a uma profunda reforma do sistema eleitoral, foram devidamente apontados, logo em 2012, no Parlamento Europeu, no relatório Tavares, cuja aprovação resultou num aviso às intenções de Orbán. Naturalmente que estas transformações encontraram terreno fértil no tecido social húngaro arduamente trabalhado durante os anos de sombra do Fidesz, mas motivaram também forte reacção na sociedade civil liberal e de esquerda, em especial na capital. Entre outros movimentos, destacamos a Milla que organizou a oposição à nova Lei da Imprensa, e juntou milhares nas ruas de Budapest (e de onde sairia o partido Együtt / Juntos), os protestos maciços contra a taxa da internet (projecto rapidamente abandonado pelo governo), e mais tarde – já no novo consulado Orbán (2014-2018), as manifestações contra as políticas anti-refugiados, o encerramento do jornal Népszabadság, e mais recentemente contra a Lex CEU, George Soros e o movimento associativo (ONG’s). Todas estas vagas de protestos, pacíficas, juntaram centenas de milhar nas ruas de Budapest.
As ambições transformadoras de Orbán não se restringiram a aspectos formais e constitucionais. A sua aspiração de refundar a Hungria teria alcance totalitário, e a sua intervenção fez-se sentir em practicamente em todos os sectores da sociedade, da política às artes e à academia, ao desporto ou à memória. Neste sentido, dando corpo cultural ao seu novo sistema de cooperação nacional, o governo Orbán substituiu desde 2010 vários directores de museus, teatros ou da Opera, fundou novos institutos (como o Veritas, com o intuito de revisitar conservadoramente a história e a memoria húngara recente), e interveio fortemente no sector da educação. Sob estes novos auspícios, deu-se início a uma extensa intervenção simbólica e programática, verdadeiro panis e circenses em tons de Verde Gaio. As Óperas modernas ou espectáculos experimentalistas foram substituídas por clássicos bucólicos de matriz exclusivamente húngara, os feriados e momentos de simbolismo colectivo reapropriados para servirem as novas narrativas, reinterpretadas de forma a consecutivamente apresentarem os húngaros como vitimas constantes da história, manietados por potências externas, sem responsabilidades em quaisquer eventos traumáticos (como o holocausto ou o período comunista, por exemplo). Também os livros escolares foram devidamente revistos, reforçando os benefícios evidentes da hegemonia etno-cultural, enfatizando, entre outros exemplos, os problemas de culturas diferentes coexistirem.
No plano económico, os últimos governos Orbán serviram para construir a sua nova oligarquia, edificada essencialmente através do sector público, no (ab)uso dos fundos europeus, dos media e da finança. Até o ano passado, o melhor exemplo desta nova classe dominante era Lajos Simicska, entretanto transformado no novo pesadelo de Orban. Simicska, há décadas amigo próximo de Orbán, e um dos homens mais ricos da Hungria, que acumulou um extenso império nos media (TV, rádio, jornais nacionais e locais e publicidade estática) que lhe permitia colocar, consistentemente, as principais linhas da propaganda governamental em todo o país. Recentemente, desavenças pessoais (muito em torno do excessivo poder que Simicska detinha nos media), levaram a um violento corte de relações, público, entre estes dois homens fortes. Tal motivou Simicska a abandonar o apoio a Orbán e a colocá-lo no Jobbik, partido de extrema-direita nacionalista (o que em parte explica a sua fortíssima campanha visual nestas eleições). Como Rei morto, Rei posto, rapidamente Simicska foi substituído, na sua capacidade de Homem-sombra, por Lőrinc Mészáros, que entre 2010 e 2017 terá ganho qualquer coisa como 1,57 mil milhões de euros em concursos públicos (90% em fundos europeus), mais de metade sem concorrência, e que fruto da sua recente aproximação a Orbán viu a sua fortuna pessoal triplicar de 100 para 300 milhões de euros.
Estas e outras questões de análise económica foram bem resumidas neste extenso artigo de Mihaly Koltai, que expõe de forma convincente a excessiva dependência do governo em relação ao investimento externo (nomeadamente da alta indústria alemã), aos fundos estruturais da União Europeia e, mais recentemente, no apoio para grandes projectos de obras públicas da parte da Russia (expansão das linhas de metro em Budapest, parque nuclear de Paks) e China (renovação da linha de comboio entre Budapest e Belgrado). Num resumo, Koltai aponta para a incongruência evidente entre o discurso quasi-isolacionista, autárcico, economicamente nacionalista, soberanista e anti-Bruxelas da parte do governo, e a evidente abertura da economia húngara, a sua política de business friendly, consagrada por exemplo na recente expansão dos shared service centers das grandes multinacionais em Budapest. Verdade que com a abertura ao investimento russo e chinês, bem como a procura da um novo posicionamento nos mercados bem mais a leste (Ásia Central ou a Mongólia) ou em África (ver abertura recente de Embaixada em Angola), tem procurado o governo húngaro alargar o seu portfólio e diversificar a sua rede de relações internacionais , mas também é verdade que sem o apoio europeu a economia magiar colapsaria, já para não referir que os bons empregos em Budapest se encontram essencialmente ligados ao mundo das multinacionais, aos investimentos ligados aos fundos estruturais da União, e aos negócios relacionados com obras públicas e organização de eventos de impacto mundial (como o recente Campeonato do Mundo de Natação – que teve uma enormíssima derrapagem orçamental)[1].
Num outro longo artigo de opinião, este de Zoltán Farkas sobre o impacto social das políticas económicas de Orbán, o autor constata que os últimos 8 anos pouco impacto tiveram, quando analisados alguns indicadores macro-económicos. Entre outros, é assinalado que cerca de 1 milhão e 300 mil húngaros vivem hoje no limiar da pobreza, números mais salientes nos pensionistas e reformados, e na minoria Roma. A distância entre o topo e a base da pirâmide social aumentou substancialmente, pois se em 2010 os 10% do topo ganhavam mais 7,3 vezes que os 10% do fundo da escala, em 2017 estes mesmo ganham mais 8.6, números que convém relacionar com o processo de acesso ao topo 10%. Outras estatísticas são o facto do poder de compra do milhão de húngaros mais pobres ter baixado 15 por cento nos últimos 6 anos, de centenas de milhares de húngaros educados e altamente qualificados terem emigrado nos últimos 5 anos, pois entendem que as oportunidades de um bom emprego na Hungria, aparte do tal mundo das multinacionais, da oligarquia e sector governamental, são hoje muito poucas. A este cenário, deve ser acrescentado o clima de elevada corrupção no país, como o comprova, entre outras dezenas largas de casos, a recentemente reportada investigação do FBI a um esquema de lavagem de dinheiro que, diz-se, poderá ter retirado da Hungria entre 3 e 4 mil milhões de euros, a maioria ligada a fundos europeus.
[1] Ainda no tema do uso de eventos públicos para o desvio de fundos veja-se a putativa candidatura de Budapest aos Jogos Olímpicos de 2024, com orçamento de vários mil milhões de euros. Esta tentativa sairia gorada pois um novo movimento liberal, Momentum, hoje partido de inspiração macronista e fortemente apoiado pelo ALDE, recolheu no inverno passado o conjunto necessário de assinaturas para provocar um referendo local. A ideia seria que os habitantes de Budapest tivessem a oportunidade de se pronunciar sobre esta candidatura faraónica. Com medo que tal consulta popular fosse contrária às suas intenções, o que era em certa medida provável, Orbán retirou a candidatura, acusando os líderes do movimento de serem agentes anti-Nação ao serviço de forças estrangeiras.
Depois de ter consolidado o seu novo sistema político, de construir e colocar a sua elite no topo da vida política, cultural e económica, e depois de garantir a reeleição de 2014, Orbán iria assumir uma atitude ainda mais agressiva, ao nível do discurso e colocação narrativa, afirmando de caras como seu principal Desidério político a construção de um Estado Iliberal, tomando como referente a Rússia de Putin e a Turquia de Erdogan. Procurando defender uma posição eurocêntrica, de matriz cristã e conservadora, exclusivista e assumidamente xenófoba, Orbán, na sua visão da Europa e do Mundo, reflectindo sobre o falhanço das políticas multiculturalistas e integradoras bem ao jeito da terceira-via, diria ser impossível a coabitação entre civilizações tão diferentes, na sua leitura, como a cristã e a islâmica. Como solução alternativa proporia um regresso a um modelo europeu assente nos valores nacionalistas das nações, apresentando como exemplo o seu sistema de cooperação nacional. Reflexo desta atitude foi a reacção, musculada, do governo húngaro aquando da crise dos refugiados de 2015. Na altura, como amplamente reportado, Orbán aproveitou a ocasião para reforçar a sua postura de defensor da fronteira europeia (como o haviam feito os magiares contra os turcos), colocando na rua todo o aparatos estatal, demonstrando força e poder, enquanto a imprensa, TV, rádio e toda a propaganda visual, bombardeava diariamente com slogans anti-refugiados, e anti-Bruxelas, o que dizia ser uma invasão de contornos bíblicos patrocinada por forças estrangeiras (hoje, mas não na altura, assumida na Soros). Fruto desta intervenção totalitária, de permanente massacre, e na ausência de qualquer contraditório comunicacional, o povo húngaro está hoje crente de que os refugiados trazem doenças, crime ou mendigagem, passando mesmo a expressão Refugiado para o primeiro lugar na lista de insultos nas escolas, ultrapassando Roma e Judeu. Um exemplo do impacto e poder de colocação de uma mensagem repetida à exaustão, e do uso exclusivo de todos os mecanismos de comunicação disponíveis em sociedades contemporâneas.
Naturalmente que todo este panorama implica uma leitura maniqueísta e binária da sociedade, sem nuances, de nós contra eles, de bons e maus. «Tudo pela Nação, nada contra a Nação», acrescentaríamos sem ironias. Como também é evidente a necessidade da existência de um clima e aparelho de propaganda permanente que entregue e carregue, todos os dias, as linhas discursivas do governo, sendo evidente o seu impacto, em especial fora de Budapest. Complementarmente a esta estratégia encontra-se, como temos vindo a fazer referência, o uso e abuso de simbolismos colectivos, agora reinterpretados de modo a encaixar na narrativa oficial e reforçar a ideia unitária em torno da Nova Hungria. Disto são exemplos, a título privado, a recente conversão de Orbán ao catolicismo (abandonando a Igreja calvinista), abraçando o credo nacional, e, em sentido colectivo, a apropriação do calendário – litúrgico e civil – para fins de consolidação do projecto político do Fidesz, como o faz o governo cada Páscoa, Natal ou no dia de São Estevão (20 de Agosto), ou a cada 23 de Outubro (revolução de 1956) ou 15 de Março (revolução de 1848). Este ano, por exemplo, há pouco mais de um mês, Orbán, intervindo aquando dos 170 anos da revolução húngara de 1848, decidiu, em plena pré-campanha, não focar a sua intervenção nos aspectos positivos da sua governação ou nos seus planos para o futuro, mas antes no medo de deixar a Hungria à “mercê dos que querem despir o país”, não com “o esboço de uma caneta, como em Trianon, mas com planos de nas próximas décadas nos entregar a outros”. «Outros», entenda-se os não húngaros, os nao-cristãos, os que, liderados por Soros, querem tomar a Europa de assalto, invadindo e violando-a sem pudor. E para quem quem pense que exagero, novamente, veja-se um poster de campanha que imagina um cenário de verão na Hungria em 2030, prevendo um conjunto de post-teenagers sorridentemente a passearem os seus bikinis no Balaton se o Fidesz ganhar (vou me abster de tecer comentários ao machismo, misoginia primária e objectivação da mulher que esta imagem transpira), enquanto que se a oposição ganhar, vemos mulheres de burkas, simbolizando a Hungria invadida. No mesmo sentido, hoje no correio tinha um flyer do Fidesz. Dizia apenas: Soros defende os refugiados, Orbán a Nação.
Ainda no mesmo discurso, Orbán prometeu que depois de 8 de Abril iria se “vingar – moral, política e legalmente” de todos estes anti-nacionalistas, uma ameaça sinistra quando são muito os escândalos que hoje abalam o seu governo. Entende-se assim que para o primeiro-ministro húngaro, todos os problemas que existam na Hungria são da responsabilidade de “uma classe supra-nacional de especuladores” (judeus ricos como George Soros) que de fora do país manietam a seu bel prazer, com o seu dinheiro e influência, a oposição; seja ela partidária, activista, não governamental, e mesmo académica acrescentaríamos com a Lex CEU em mente. O ridículo, a meu ver, e considerando as origens de alguns dos principais actores da citada revolução de 1848, é que os mesmos eram húngaros de alma, mas não de proveniência, nem credo, nem muitas vezes etnia, como definidos à mingua hoje: Lajos Kossuth era luterano de origem eslovaca e mãe alemã; Lajos Batthyány de Poszony, hoje Bratislava, formado em Zagreb; István Széchenyi, um dos Grandes Húngaros, nascido em Viena com bastas ligações à alta nobreza europeia (nomeadamente alemã e austríaca); o poeta János Arany originário da actual Roménia, Mihály Táncsics tinha origem croatas e mãe eslovaca e finalmente, o bardo da revolução, Sándor Petőfi, havia nascido e sido registado como Alexander Petrovič, de acordo com a origem sérvia e eslovaca dos pais. Recordemos ainda que Budapest, aquando dos mesmos acontecimentos revolucionários de 1848 que colocaram a Hungria no mapa da Primavera dos Povos, era uma cidade maioritariamente com identificação linguística alemã, com forte minoria húngara, eslavos de diferentes proveniências, judeus, Roma, cristãos de obediências várias, ateístas, etc. Ou seja, a Hungria dos húngaros tão defendida e apregoada por Orbán, com sucessivos retornos às suas Idades de Ouro, sempre foi na realidade um produto exemplar do multiculturalismo vivido no país, em especial na sua capital, que agregava em seu torno intelectuais e políticos, cientistas e jornalistas de toda a área e credos de alcance do Império Áustro-Húngaro.
A Oposição
Pelo que temos exposto até aqui, o estado da oposição na Hungria é, e nem podia ser outra coisa, bastante mau. Em primeiro lugar tem muito pouco espaço público, pois practicamente todos os canais comunicativos encontram-se controlados por aliados do governo, com a recente excepção do Jobbik, fruto do referido desaguisado entre Orbán e Simicska (não por acaso de longe é o Jobbik quem ocupa mais espaço de propaganda estática nas ruas de Budapest). Depois, porque o governo assim o obriga, é quase inexistente o espaço de debate político. Seja nas televisões, no parlamento ou na arena pública. Por exemplo, não haverão debates com responsáveis governamentais no período da campanha, apenas entre a oposição, pois Orbán recusou-se debater com quem quer que seja. Finalmente, o sistema político húngaro não deve ser considerado binário, nem enquadrado numa análise linear entre esquerda e direita, como se à direita se encontrasse o Fidesz e à sua esquerda toda a oposição. Antes pelo contrário. O maior partido da oposição, por diversas razões, é o Jobbik, assumidamente extremista, nacionalista, racista, xenófobo, apesar das suas tentativas recentes de abandonar tais preceitos e de se reposicionar mais ao centro, de forma a poder considerado como alternativa de governo e, acrescentaríamos, potencial parceiro na mesa negocial da oposição. Conta, segundo algumas sondagens, entre 8 e 18 %. Depois, ainda sem ter conseguido recuperar da hemorragia eleitoral sofrida em 2010, encontramos do MSzP, que nos últimos meses mudaram de candidato a primeiro-ministro 3 vezes (factor suficientemente indicativo da sua falta de consistência). Os socialistas contam nas sondagens como tendo entre 5 e 12 %. Depois, seguindo no campo da esquerda, encontramos a Coligação Democrática / DK, spin of do MSzP depois da saída de Ferenc Gyurcsány (com as devidas distâncias, o mesmo que se em Portugal José Sócrates formasse um novo partido). Tem contabilizando nas sondagens apoios entre os 5 e os 8%, sensivelmente o mesmo do LMP (o bloco de esquerda local). Por fim, com números residuais nas sondagens nacionais, o Momentum (movimento liberal apoiado pelo ALDE e responsável pela desistência da candidatura de Budapest aos Olímpicos) e o Együtt (construido em torno do movimento civil Milla, e do ex-primeiro ministro Gordon Bajnai, substituto de Gyurcsány), com números entre o 1 e os 3 %. Nas sondagens o Fidesz tem recolhido entre 27 e 46 % das intenções de voto, com os indecisos a situarem-se entre os 25 e os 40 % (mais análise aqui).
Postas estas curtas apresentações, importa referir que em muitos casos a oposição tem se entretido a se debater, deixando o Fidesz fora do seu foco. E se o tema da recente (re)conversão do Jobbik (e respectiva aceitação ou não como parceiro negocial) se entende, menos se compreende as constantes picardias entre o sector liberal e de esquerda, mais lembrando despiques entre fidalgos de baixa patente destinados a deixar a Coroa longe e intocável. Orbán, naturalmente, agradece. Para completar o ramalhete, o (novo) sistema eleitoral húngaro foi desenhado a régua e esquadro, sem debate, negociação ou consulta, de forma a pintar facilmente o mapa de laranja (a cor do Fidesz), pois foram não só reduzidos o número de deputados (diminuindo a representatividade) e redesenhados os círculos uninominais de forma a diluir o voto urbano em áreas rurais (mais uma vantagem para o governo), como se anulou a necessidade de uma segunda volta aquando da não obtenção de mais de 50% dos votos, um estratagema através do qual o Fidesz procurou tirar proveito das divisões na oposição e do facto de ser, na maioria dos casos, o primeiro partido nas intenções de voto. Por detrás da ideia do governo encontra-se a leitura de que, mesmo com resultados na casa dos 30-35%, o Fidesz conseguiria com facilidade eleger deputados nos círculos uninominais em que a oposição se apresentasse dividida, pois com vimos esta raramente ultrapassa os 20%. Com tais características, não admira que estas alterações tenham sido bastamente criticadas pela OSCE.
Sob estes pressupostos, resta à oposição procurar encontrar o conjunto de acordos necessários para ser competitiva e procurar impedir nova maioria constitucional ao Fidesz, o seu grande objectivo nestas eleições, pois poucos são os que creem ser possível retirar Orbán da chefia do governo. Uma possível estratégia de colaboração entre as forças da oposição tem provado ser bem eficaz, como o demonstra as recentes eleições intercalares para a câmara municipal de Hódmezővásárhely, onde toda a oposição assentou arraiais em torno do independente Péter Marki-Zay contra o candidato apoiado pelo Fidesz, com o resultado de 57-41 para o independente, e uma estrondosa derrota para o governo a 2 meses das eleições gerais. Depois desta façanha, não admira que grande parte das inquietações desta campanha revolvam em torno de se saber se a oposição se entende, como, onde e quando, defendendo vários observadores (como Cas Maude) que nos círculos uninominais os candidatos da oposição deveriam retirar as suas candidaturas em prol do melhor colocado, transformando estas eleições numa competição entre Governo e Oposição, mesmo se isto signifique aceitar o Jobbik como parceiro negocial. Para reforçar esta ideia, um grupo de cientistas políticos húngaros criou este site onde identifica quem estaria melhor colocado, e têm saído a lume alguns casos bem práticos, onde uma articulada colaboração retiraria ao Fidesz um bom punhado de deputados, estimando-se que nestas matemáticas pré-eleitorais, em mais de 50 os círculos eleitorais as possibilidades para uma oposição competitiva são consideradas reais. Claro que as contas para a lista nacional são outras. O problema, e Orbán sabe bem isso, é a oposição conseguir chegar a acordos, mesmo que pontuais, pois esta encontra-se não somente (muito) dividida ideologicamente, como sabotada por um conjunto de péssimas relações inter-pessoais entre muitos dos seus líderes partidários, já para não referir as diferentes leituras estratégicas acerca do pós 8 de Abril e a não existência de uma visão estratégica alternativa a Orbán; ou seja, a existir alguma coligação ela será sempre pontual e negativa, circunscrita a casos bem específicos (círculos uninominais), nunca de alcance nacional e positiva no sentido de apresentar ao eleitorado um primeiro-ministro concreto e alternativo a Orbán. Vejamos com mais atenção estes pontos.
Como já referimos, o maior partido da oposição, e o com mais recursos (Simicska), é o Jobbik, posição que lhe permite alguma altivez na forma como se posiciona nestas eleições. Assim, se por um lado pretende o Jobbik consolidar a sua posição de segundo partido húngaro e se posicionar para o inevitável cenário pós-Orbán, por outro não pretende que o actual primeiro-ministro reforce a sua base eleitoral, em especial depois da sua acentuada guinada à direita. Neste sentido, tem o Jobbik recusado entrar no jogo negocial da oposição, ao mesmo tempo que se tem colocado a jeito para ser um eventual parceiro de coligação governamental caso Orbán o necessite (apontam-se pastas como a educação ou a Administração Interna). Recorde-se ainda que o Jobbik se tem destacado pela sua linha de ataque (bem eficaz) à corrupção, a sua principal bandeira programática, junto da defesa ultramontana de valores ultranacionalistas. Já a esquerda e os liberais (MSzP, DK, LMP, Együtt e Momentum) têm acumulado reuniões, quer de âmbito nacional como local. Destaque-se, pelo bom porto alcançado, as negociações entre o MSzP, DK e Együtt, que acordaram entre eles apoiar o candidato mais bem colocado em cada distrito uninominal. No restante tem sido um processo demasiado tumultuoso para ser levado mais a sério. Veja-se o exemplo de uma das últimas reuniões entre o DK, o LMP e o Momentum que acabou com denúncias de falta de cordialidade da parte do anfitrião (DK), acusado ainda de estar bêbado e de não ter sequer oferecido uma bebida aos convivas (acusação que motivou a ameaça de um processo da parte do DK contra o LMP). E notícias de maus relacionamentos inter-pessoais assolam os jornais todos os dias.
Em termos de bandeiras eleitorais, devemos destacar a campanha do DK que, pela voz do seu líder, tem procurado cavalgar o tema da corrupção, prometendo mandar prender Orbán no improvável cenário de conseguir ser eleito primeiro-ministro. Já o Momentum, os new kids in the block, se num primeiro instante procuraram se posicionar fora das tradicionais lutas políticas, estão hoje dispostos a negociar pontualmente o abandono de candidaturas em prol de candidatos melhor colocados. Em todo o caso, sendo um partido bem jovem, com a maioria dos seus líderes abaixo dos 35 anos (o que lhes tem valido a comparação com o Fidesz dos finais dos anos 80), e com forte apoio do ALDE, e mesmo de Macron, o Momentum tem uma estratégia de medio-longo prazo bem definida: ser o futuro (liberal) da Hungria. Nestas eleições irão procurar entrar no parlamento e nas europeias do próximo ano lograr um lugar em Bruxelas (nas eleições autárquicas do Outono de 2019 logo se vê). Já os socialistas do MSzP, hoje praticamente um partido de pensionistas, procuram manter a sua existência e relevância sistémica. E se, do ponto de vista eleitoral ainda assumem a liderança liberal-progressista (através da força do seu eleitorado sénior), do ponto de vista cultural são praticamente insignificantes, como tantos outros partidos no seio da social-democracia europeia. Terá, a meu ver, se quiser reassumir um papel de liderança agregadora, de abrir e repensar o seu modelo de partido, hoje demasiado afastado das principais fontes energéticas da sociedade (situação partilhada por tantos outros partidos socialistas europeus, e tema para um outro artigo). Együtt e LMP procuram nesta campanha manter a sua presença parlamentar, e grau de significância num futuro onde possam contribuir para a construção de uma real, e operativa, alternância a Orbán, pois a mesma terá sempre de passar, a meu ver, por uma grande coligação, por uma geringonça à Húngara.
Pelo que expusemos até agora, não deve estranhar que durante a campanha pouco se tenha debatido programas de governo ou projectos para o futuro do país. Nem tampouco, da parte do governo, os resultados dos últimos anos de governação. Tem sido, do nosso ponto de observação, uma campanha assente no discurso do ódio e do dilúvio sem mim (da parte de Orbán), e na tentativa da oposição em marcar pontos nos temas da corrupção, do desinvestimento no sector público (em especial na educação e saúde), na incapacidade de reter na Hungria os seus melhores quadros (remetidos à emigração), na excessiva proximidade de Orbán com Putin ou Erdogan, e nas características visíveis do totalitarismo de Estado subjacente ao sistema de cooperação nacional que, em opinião de muitos, retira a Hungria do seu lugar de direito no seio da cultura (liberal) europeia.
Cenários e conclusões
Depois deste longo artigo, resta-nos para concluir apresentar um par de cenários e conclusões gerais.
Cenário 1. Orbán resiste a tudo e todos.
Este será o quadro preferido do actual primeiro-ministro: o de garantir nova maioria constitucional. A acontecer significará o triunfo do seu modelo iliberal, da eficácia da sua propaganda permanente, e de todas as condicionantes institucionais que temos vindo a observar. Este cenário possibilitará ainda a Orbán não só manter a rota traçada como apertar o ferrolho em seu redor, pois l’État cést moi. A acreditar nas suas palavras, uma votação maciça dar-lhe-ia ainda luz verde para se vingar moral, política e legalmente da oposição. Do ponto de vista internacional, este será um cenário que agradará mais a leste que oeste, pois implicará a demonstração da falência do modelo liberal de cariz ocidental, e a consolidação de fórmulas alternativas, de carácter plebiscitário e de consagração de projectos (ultra) nacionalistas de novo-tipo. Certamente que Orbán receberá expressivas notas de parabéns de líderes como Putin, Erdogan ou Trump, enquanto que muitas das chancelarias (e instituições) europeias certamente começarão a pensar num novo exit, e na inevitável reconfiguração do projecto europeu.
Cenário 2. Vitória de Pirro. Triunfo de Orbán, longe da supermaioria
Em certa medida é este o cenário actual. Tal significaria que Orbán veria em certa medida sufragado o seu governo, sem bem que impedido de seguir a seu belo prazer futuras reformas constitucionais, obrigando-o antes a uma navegação mais cuidada, e a um mais apurado controlo das dinâmicas da oposição (Jobbik versus o resto). Uma leitura mais cuidada dos resultados deste cenário ganhará importância se considerarmos que no Outono do próximo ano haverão eleições municipais, contexto onde o Fidesz se arrisca a perder câmaras importantes, a começar na capital, Budapest. No contexto internacional este seria talvez o cenário com menos riscos, pois representaria um business as usual, um cartão amarelo às ambições totalitárias de Orbán e a necessidade de alguma abertura e pluralismo no contexto político húngaro. Todas boas notícias no contexto europeu, e também bem recebidas a leste, pois não colocariam em causa a natureza das relações, e dos negócios, em curso.
Cenário 3. Triunfo de Orbán sem qualquer maioria
Este é o primeiro dos cenários complexos, pois Orbán tem demonstrado todas as características de ser um líder absoluto, ou seja, imune a qualquer necessidade negocial. Não obter maioria a 8 de Abril significaria, numa leitura plebiscitária, que o Governo não representa, afinal, os desejos expressos da Nação, e consequentemente veria rejeitado o projecto de remodelação da sociedade húngara. Paralelamente, um resultado desta natureza significaria não somente um regresso da política (no sentido liberal da necessidade de diálogo, negociação e construção de consensos), como na possibilidade de vermos desenhada uma coligação pós-eleitoral entre o Fidesz e o Jobbik, parceiro possível nas actuais circunstâncias ao se verificar um hung parliament. Inversamente, um contexto de imperativa remoção de Orbán da liderança governamental (ligado, por exemplo, a uma narrativa de combate à corrupção e substituição da elite económica e cultural) obrigaria a oposição a se articular em torno de um máximo denominador comum de concentração monotemática exclusiva: derrubar Orbán (um pouco como no PEC IV, que obrigou a queda de Sócrates). Depois de veria das possibilidades de apresentar governo alternativo (ver cenário 4). No panorama internacional este seria um cenário que obrigaria as principais chancelarias a colocar mais atenção em Budapest, e ao mais que provável reforço de pessoal diplomático nas principais Embaixadas.
Cenário 4. Triunfo da oposição.
É um cenário altamente improvável a não ser que existam um conjunto de acordos de última hora, e o eleitorado húngaro esteja suficientemente motivado para sair de casa e votar maciçamente de forma estratégica. É, de longe, o cenário mais complexo para o futuro da Hungria, pois a se verificar tenho dúvidas de quem poderia ser o primeiro-ministro alternativo a Orbán (possivelmente teria de sair de uma personalidade independente que garantisse senão apoio expresso por parte de todos os partidos, pelo menos um não bloqueio ou veto da parte dos mesmos). Mais imprevisível ainda seria prever a reacção de Orbán, do Fidesz, e da elite instalada, caso os laranjas não saiam triunfantes no próximo domingo. No actual clima de agressividade política e com a agravante dos exemplos recentes de violência pós-eleitoral (como os verificados em 2006), temo que tudo seria possível, especialmente em Budapest. Do ponto de vista da operacionalidade do sistema político esta seria um situação de enorme instabilidade e incerteza, pois tenho a impressão convicta da oposição não estar de todo preparada montar uma geringonça magiar, pois não somente não existem líderes e estruturas políticas para isso capacitadas, como a necessidade de encontrar um equilíbrio estável entre o extremismo ultra-nacionalista do Jobbik e as tradições liberais-progressistas do resto da oposição me parece muitíssimo improvável. A geringonça possível seria no campo liberal-progressista, e este é curto. O mais certo seria o país se tornar ingovernável, e esperando que as eleições de Outubro de 2019 clarifiquem a situação política, enquanto se pensa em eleições antecipadas. Neste cenário importa ainda destacar a figura institucional do Presidente da República, personagem institucionalmente figurativa, eleita indirectamente pelo Parlamento, mas que numa situação de crise institucional poderia se tornar relevante. Escusado será referir que o actual Presidente é absolutamente controlado pelo Fidesz, a quem de resto deve a selecção e eleição. Do ponto de vista internacional, esta situação obrigaria a um certo regresso ao futuro, pois todas as possibilidades voltariam a estar em cima da mesa, como no início dos anos 90 e da transição do modelo comunista (déja vu?). Imagino que a maioria dos grandes players internacionais (no sentido político) regressariam em força à planície da Europa Central (partidos, think tanks, Estados e NGO’s). Do ponto de vista económico, muitas das multinacionais que hoje investem fortemente em Budapest seguramente fariam um hold e wait and see enquanto reconfiguravam a sua rede de ligações e garantias de retorno do seu investimento.
Em todo o caso, entrando nas nossas conclusões, estas eleições serão um teste ao pulsar democrático húngaro, bem como – numa perspectiva europeia – ao estado actual das forças populistas, nacionalistas, proto-autoritárias, em especial no Leste da Europa, uma vez que não devemos retirar a Hungria do contexto do V4 (juntamente com a Polónia, a República Checa e a Eslováquia). Serão, como todas as eleições em contextos autoritários, um momento plebiscitário, de validação do projecto de alcance totalitário de Orbán, e todo o resultado que não seja uma expressiva vitória laranja tem de ser considerada uma derrota pessoal para o seu líder. Estas são, portanto, umas eleições para Orbán perder. Também como em sistemas quasi-autoritários, estas serão eleições plebiscitárias, desenhadas para entender quem está contra e pela Nação. Daí o dilúvio em caso de não-(re)entronização de Orbán e (re)validação do seu projecto político nacionalista, e a promessa de tempestades persecutórias contra todos e todas que não sufraguem a Nação.
Domingo tem a palavra o eleitorado húngaro.