Há quem não queira falar dela. Há quem a ignore e que não a tome como parte do todo. Há também quem não nos avise que a morte não fica à espera do nosso regresso. A morte continua, sempre de nariz empinado, muito dona de si, a levar-nos quem amamos. Mesmo quando estamos a milhares, muitos milhares, de quilómetros de distância.
Dizer que perder alguém que amamos é profundamente triste, seria como insultar a dor. É trágico. É horrível e rasga-nos o peito como nenhuma outra coisa consegue. Rasgão que não tem cura. Que não sara. Talvez fosse esta a intenção dos antigos, quando, do alto da sua sabedoria, arrancavam um “só não há solução para a morte”. É de senso comum: a morte dói. Dói muito.
Enquanto emigrante, pensar na morte é, já por si, um processo angustiante. Estamos longe. Muito longe. Por variadas razões. Dinheiro, estabilidade, amor, oportunidades, aventuras. Estamos longe porque queremos ser mais, fazer mais e conseguir mais. Só mais um bocadinho. Nesses momentos, em que colocamos os sacos da vida na balança questionamo-nos o que vale mais. Quem vale mais? A carreira? O dinheiro? A mãe? O pai? Os avós que nos limpavam o nariz com o seu avental, o mesmo com que limpavam a boca. Sem nojos. Rotulamo-nos de idiotas por nos questionarmos sobre algo tão inquestionável. É evidente, é óbvio, que a mãe vale tudo, o pai vale o dobro e os avós são o ar que respiramos.
Entristece-nos não lhes chegarmos, não lhes sentirmos o cheiro todos os dias, ou pelo menos uma vez por mês. Mas seguimos, convictos de que faz parte da vida.
Quando recebemos aquele telefonema que ninguém quer receber, o mundo cai. Desfaz-se em pedaços minúsculos e, de joelhos no chão, tentamos reuni-los com a maior rapidez e força do mundo. Como se pudéssemos controlar o tempo. Como se conseguíssemos alterar a decisão da morte.
Focamo-nos. Enchemo-nos de força e segue-se uma jornada quase inenarrável. Macau a Portugal torna-se a viagem mais longa da nossa vida. Enchemos uma mala cheia de nada, vazia de tudo. Não sabemos o que levamos mas sintamo-la pesadíssima. Tentamos comprar o bilhete para o voo mais rápido e corremos para o terminal de barcos de Macau. Queremos estar no aeroporto em cinco segundos, mas naquele dia o tempo teima em não passar. Não pensamos no preço da viagem, ou pelo menos evitamos pensar. E, uma vez mais, o dinheiro volta à nossa vida. Refilamos e questionamos se algum dia a distância valerá a pena?
Ele morreu. Morreu sem me dizer adeus. Sem eu lhe dizer adeus. Morreu e eu estou tão longe. Pensamos e choramos. Choramos como bebés famintos ou cheios de cólicas. Choramos compulsivamente ignorando olhares curiosos, incapazes de nos perguntar se precisamos de alguma coisa. Se está tudo bem. Queremos gritar que está tudo mal!
Durante o voo, não há filme, série ou calmante que diminuam o terror de quase 16 horas de viagem. As escalas parecem castigos divinos e ao chegar acreditamos que não temos mais lágrimas para deixar cair. Tal madalenas arrependidas. Mas temos. Temos muitas mais. Cada poro nosso quer chorar pela morte e pela culpa.
Pela culpa de não estarmos presentes. Pela culpa de não termos ido mais vezes. Pela culpa de não termos ligado outras tantas. Pela culpa da última chamada não atendida. Pela culpa de visita a este lado, que sempre se falou mas nunca se cumpriu. Pela culpa de ser ao longe. Muito longe.
Voltamos. Voltamos para aqui. Com uma parte a menos. Com a certeza que pertencemos cada vez menos ao lado de lá. Voltamos e desejamos nunca ter vindo.