Na primeira pessoa: “Fiz uma barraca como gosto, com cimento, estucada por dentro e por fora. Não temos muito, mas estamos contentes”

Foto: Marcos Borga

Na primeira pessoa: “Fiz uma barraca como gosto, com cimento, estucada por dentro e por fora. Não temos muito, mas estamos contentes”

Moro há 44 anos no Bairro Casal de Muro, no Talude, em Loures. O meu irmão já cá estava quando me mudei, em 1979. Abri os roços e comecei a construir a minha barraca de tijolo. Não havia dinheiro para os materiais, tipo tijolos, cimento e areia. Por isso, comprava fiado numa estância aqui perto e pagava em prestações no final de cada mês. Construía a casa aos fins de semana e só me mudei de vez quando instalei a porta.

Na altura, morava na zona de Entrecampos, mas quis sair de Lisboa para deixar de pagar renda de casa. Saía muito caro – a mensalidade era quase o mesmo que recebia a trabalhar nas obras.

Sou natural de Cabo Verde, de Santa Catarina, e cheguei a Portugal com 16 anos, em 1971. Vinha com a intenção de estudar, pois tinha a frequência do segundo ano do liceu, mas, sem qualquer tipo de apoio financeiro, tive de começar logo a trabalhar. Sempre soube que ia ser cozinheiro. A vida de imigrante nesta terra não é fácil.

Entre 2007 e 2014, tive um restaurante, que se chamava O Moinho, ali na rotunda que vai para o Bairro das Coroas, em Unhos (Loures), mas, mais uma vez, a renda ficou muito cara, e eu não conseguia pagar os 1 300 euros.

Somos uma comunidade unida, a maior parte vinda de Cabo Verde, como acontece com os portugueses em França. Todas as casas foram construídas pelas pessoas que aqui moram. Agora, existe menos entreajuda porque também já não há hipótese de erguer novas habitações

Agora, vivo de biscates, menos da construção civil e mais como cozinheiro. Aqui no café, há cachupa aos sábados, ou por encomenda, além de feijão salteado, chanfana, costeletas de porco, costeletão, bacalhau… enfim, faço o que me pedirem.

Consegui logo a nacionalidade portuguesa, nunca estive ilegal. Na altura em que construí a barraca, e depois de os fiscais camarários terem andado aqui a tirar fotografias – ainda só tinha paredes, sem placa nem telhado –, eu e o meu irmão fomos à câmara municipal para pagar a multa pela construção ilegal. Foram quase dois contos [equivalente, atualmente, a 139 euros], e ainda guardo esse recibo.

Até hoje, só não posso construir mais em altura. Já fiz alguns melhoramentos e isolamentos, mas agora está tudo cheio de humidade outra vez. Felizmente, sempre tive casa de banho, mesmo quando não havia canalizações no bairro. Íamos buscar água a uma fonte e também vinha até cá um carro de bombeiros, e abastecíamos.

Nos anos 80, tivemos finalmente acesso a água canalizada com a ajuda da Associação de Melhoramentos e Recreativo do Talude. Abriram um ramal no campo da bola, nós tratámos da vala à entrada do bairro e pusemos um contador comum. Quando chegava a fatura, dividíamos por todos.

Durante muitos anos, quase 20, não houve eletricidade em casa. Usávamos a luz das velas ou um pequeno gerador que comprei. Só acendemos a luz em casa em 1997, já depois de a câmara municipal instalar os postes elétricos.

Lembro-me de que pagámos à volta de 117 contos [equivalente, hoje, a 969 euros] pela instalação e, mais tarde, percebemos que só deveríamos ter pago 30 contos [248 euros].

Aqui onde estamos, dantes era mato e lixo de um aterro na Estrada Militar [que vai até Benfica, em Lisboa], e hoje está em muito pior estado. Já uma vez demos todos dinheiro para alcatroar a estrada, mas a camada de alcatrão foi muito fininha e, com o tempo, estragou-se de novo.

As chuvas fortes e enxurradas no final do ano passado pioraram a situação. A Câmara Municipal de Loures com o PS está pior do que anteriormente, com o PCP. Vê-se tudo em escombros, parece que a guerra passou aqui.

Até ao ano 2000, houve fundos – penso que eram da câmara – para quem quisesse sair do bairro e dar entrada para comprar uma casa. Partiram, pelo menos, sete famílias, mas logo se arrependeram, pois ganharam uma despesa que não tinham: a renda da casa.

Comunidade unida

Fui dos primeiros a entrar no bairro, hei de ser o último a sair. Não mudo nada pelo conforto que temos aqui. Isto é o paraíso. Fiz uma barraca como gosto, com cimento, estucada por dentro e por fora.

As condições que tenho aqui não existem em apartamentos. Num prédio, ia sentir-me preso e muito limitado. Tenho um quarto para cada filha [ainda moram com Rolando, além da mulher, duas filhas], e o meu terreno, onde crio galinhas, patos e ovelhas, cultivo hortaliças, limão, cana-de-açúcar, dióspiros, peras, ameixa preta, laranjas, chuchus, cebolas, louro, coentros, salsa, malaguetas, milho e feijão.

Se tivesse dinheiro, comprava uma moradia, mas tinha de ter terreno, e queria continuar em Loures. Vi este bairro crescer, as famílias a chegar, os filhos a formarem-se. Daqui já saíram advogados, engenheiros… A minha filha mais velha [46 anos] é enfermeira.

Não temos muito, mas estamos contentes. Eles que façam a estrada; o resto encarrego-me eu de fazer, seja pintura, construção do telhado ou qualquer melhoramento. Um presidente da junta de freguesia já nos prometeu que punha o autocarro a passar aqui, mas nunca aconteceu.

Somos uma comunidade unida, a maior parte vinda de Cabo Verde, como acontece com os portugueses em França. Todas as casas foram construídas pelas pessoas que aqui moram. Agora, existe menos entreajuda porque também já não há hipótese de erguer novas habitações.

Quando vejo as notícias sobre as demolições de barracas noutros bairros de Loures, fico triste, mas aqui nunca ninguém foi despejado, e as famílias que viviam nas casas que tiveram de ser demolidas foram realojadas.

Quem conhece o bairro não tem medo de cá vir, sabe que não há problemas de delinquência, drogas ou violência nas ruas. Sempre tive morada completa; nestes anos todos, só o código postal mudou por duas vezes. Nunca sentimos discriminação por vivermos aqui. Depoimento recolhido por Sónia Calheiros

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