O s sinais de alerta começaram em fevereiro de 2017 e foram aumentando gradualmente. A Constança bebia muita água, tinha muito apetite, cólicas abdominais em demasia, muita sede, dores musculares e diarreia. O diagnóstico chegou a 26 de agosto de 2017, tinha ela 7 anos. Lembro-me de estarmos ao redor da mesa e de decidirmos medir a glicemia. Naquele momento, estava a 365 mg/dl e, uma hora depois, no hospital, atingiu os 606 mg/dl. Foi um choque. Por sorte, não entrou em coma.
Já no quarto do hospital, a Constança recebeu a administração de insulina pela primeira vez. Foram precisas cinco pessoas para a segurar enquanto ela gritava, chorava e esperneava. E eu, como mãe, tinha uma enorme sensação de impotência. Costumo dizer que esta foi a primeira noite enquanto diabéticas: ela como diabética tipo 1 e eu como diabética por afinidade. E foi nesse momento que formámos a nossa equipa.
Custou-me muito assimilar a ideia de que esta era uma doença para toda a vida, pois ver a minha filha naquele desespero e saber que esta não seria uma situação temporária era algo aterrorizante e indescritível.
Depois da alta hospitalar, regressámos a casa, mas nada era igual. O diagnóstico de diabetes mudou a 100% a nossa vida. Contudo, era preciso agir e aprender tudo o que estivesse ao meu alcance para dar o meu melhor.
Adaptar a vida à diabetes
Em setembro, apenas 20 dias após o diagnóstico, a Constança começou as aulas do terceiro ano e teve a sorte de ser acolhida com todas as condições de que necessitava. Foi-nos designada uma assistente operacional para a acompanhar, que tinha como missão medir e monitorizar as glicemias, administrar insulina (na altura, ainda com uma caneta), fazer contas e ajustes alimentares para transformar os hidratos de carbono em unidades de insulina.
Felizmente, a assistente operacional já tinha recebido formação na Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) para poder acompanhar e cuidar de crianças com Dt1. Tornou-se uma das nossas melhores amigas e acompanhou a Constança durante dois anos, cuidando dela com amor, carinho, paciência e compreensão ímpares.
O tempo que eu não tenho com as minhas filhas é o meu custo de oportunidade por ter optado pela bomba de insulina híbrida. Não me arrependo. A decisão vale todo o esforço físico e monetário, pois trouxe liberdade, autonomia e devolveu-lhe a normalidade típica de uma adolescente. Por outro lado, a Constança sente-se menos ansiosa e mais descontraída, porque não tem de estar constantemente a controlar os valores da glicemia
Também a professora do ensino básico recebeu a minha filha de braços abertos, com todas as condicionantes e preocupações que esta doença acarreta. Quis aprender tudo, frequentou a formação na APDP, fez sempre questão de que a Constança fosse a visitas de estudo, acompanhava-a nas aulas de Educação Física e abdicou, não raras vezes, da sua hora de almoço para se certificar de que a menina comia exatamente o que era suposto. Tenho plena noção de que fomos abençoadas relativamente à escola, porque já ouvi e li relatos assustadores.
Foi difícil deixar a Constança ter as mesmas rotinas de outras crianças da sua idade. Só ia aonde eu fosse – deixou de ir para a casa dos avós, a festas de aniversário, à praia com a avó Ermelinda, deixou de passar dias no monte com o avô Pratas… deixámos de ir ao restaurante em família e ao centro comercial. Privámo-nos muito. A nossa vida ficou suspensa até nos sentirmos minimamente confortáveis.
No começo, tinha medo de dormir, com receio de que os níveis de glicemia da Constança se alterassem. Eu trabalho a 40 quilómetros de casa e, quando voltei ao emprego, de cada vez que o telemóvel tocava e via que era da escola, o meu coração ficava em sobressalto, mas, na realidade, era só para aconselhamento ao nível da medicação a administrar. Por dia, é necessário tomar dezenas de decisões em relação à diabetes, e isso tem um peso grande nas nossas vidas.
Trabalho numa empresa de outsourcing, em que faço a gestão administrativa do serviço. O meu vencimento base, até agosto passado, era o ordenado mínimo, passando a auferir 800 euros a partir dessa data. Em janeiro de 2022, optei por arranjar um segundo emprego, em part-time, num hipermercado. O vencimento base é de 355 euros. Tenho dois trabalhos para conseguir suportar as despesas da doença da minha filha.
Desde setembro de 2021, a Constança passou a usar uma bomba de insulina híbrida, e foi uma evolução extraordinária, pois veio aumentar a qualidade de vida da minha filha. Esta bomba tem o custo mensal de 312,70 euros, mas eliminou muitas picadas no dedo e injeções de insulina. Finalmente, passei a dormir sem ter de acordar de duas em duas horas e tornei-me mais produtiva e ativa durante o dia. Entretanto, consegui tirar uma pós-graduação e nunca deixei de trabalhar, mesmo durante a pandemia. Quero ser um exemplo para a minha filha.
Já não tenho de ficar ansiosa no caso de a Constança se esquecer de tomar insulina às refeições, pois, nas poucas vezes em que isso acontece, a bomba administra insulina para compensar a subida da glicemia, sem manipulação humana, fazendo com que os valores se mantenham estáveis. E o facto de os valores estarem mais regulares trará muitos outros benefícios para a sua saúde, a longo prazo.
Além do custo mensal com a bomba de insulina, há outras despesas variáveis. Suporto a deslocação a Lisboa, para consultas na APDP, onde a minha filha é acompanhada por uma equipa multidisciplinar, de dois em dois meses. E também outros custos com consumíveis. É tudo a somar ao valor da bomba, que, se fosse comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde, pesava menos no orçamento familiar.
Neste caso, o tempo que eu não tenho com as minhas filhas é o meu custo de oportunidade por ter optado pela bomba de insulina híbrida. Não me arrependo. A decisão vale todo o esforço físico e monetário, pois trouxe liberdade, autonomia e devolveu-lhe a normalidade típica de uma adolescente. Por outro lado, a Constança sente-se menos ansiosa e mais descontraída, porque não tem de estar constantemente a controlar os valores da glicemia.
Aguardamos a discussão, no plenário da Assembleia da República, de uma petição a solicitar que as mais de cinco mil crianças e jovens com Dt1 tenham acesso aos novos dispositivos automáticos de insulina. Queremos melhorar a qualidade de vida de quem tem diabetes e dos seus familiares. É esta a nossa luta.
Testemunho recolhido por Cláudia Pinto