Sofri de bullying entre os 7 e os 14 anos, uma idade tramada, em que és uma esponja e absorves aquilo que te acontece com muita intensidade. Eu era uma miúda caladíssima, medrosa e tímida. Por isso, tornei-me o alvo mais fácil da escola. Um grupo de rapazes chamava-me nomes, dava-me empurrões, atirava-me coisas, roubava-me peças de roupa e mandavam-nas para longe. Isto não acontecia todos os dias, mas a ameaça estava sempre lá.
O pior era o recreio, tinha medo de encontrar os bullies. A humilhação e a exclusão eram ainda mais difíceis. Tinha vergonha de estar sozinha, de ver todos a brincar à minha volta e de não ter amigos. Ninguém quer estar perto de alguém que sofre de bullying, parece algo contagioso, não querem ser metidos no mesmo saco. Foi uma experiência muito solitária, não contava a ninguém o que se passava, nem aos meus pais. De certa maneira, não falava, porque sentia que merecia aquilo. E é isso que é importante desconstruir, ninguém merece sofrer de bullying.
Na altura, arranjava maneiras de me defender. Só queria tornar-me invisível. Assim, aprendi a observar. A ver mais além. Sabia que se os rapazes estivessem em grupo, a fazer barulho, com uma postura mais segura, mais feliz, provavelmente iriam reparar em mim. Por isso, às vezes, esperava que eles se fossem embora, ou escolhia um outro caminho para evitá-los. Nos intervalos, tentava ficar na sala e, se não conseguia, refugiava-me numa das casas de banho, à espera que o tempo passasse e a campainha tocasse. Exige muita coragem, ir para a escola sabendo que é isto que vamos enfrentar, numa idade em que não temos grande estrutura mental.
Ninguém quer estar perto de alguém que sofre de bullying, parece algo contagioso, não querem ser metidos no mesmo saco. Foi uma experiência muito solitária, não contava a ninguém o que se passava, nem aos meus pais. De certa maneira, não falava, porque sentia que merecia aquilo. E é isso que é importante desconstruir, ninguém merece sofrer de bullying
O bullying só parou quando cheguei à adolescência. Não sei bem como, mas tornei-me a confidente das raparigas da turma. Como era boa ouvinte, vinham contar-me os seus problemas e pediam-me conselhos sobre os pais, os rapazes de quem gostavam, as amigas, a escola… e tentava mostrar-lhes um caminho mais otimista para saírem da situação que as afligia. Era ridículo, tinha até uma agenda para as receber. O certo é que, a partir dali, passei a ter uma comunidade e, quando isso acontece, o bully não se aproxima. Esse é um dos exercícios que propomos no livro, o de construírem visualmente uma rede de pessoas a quem podem pedir ajuda.
Há uns meses, um dos rapazes que gozava comigo, o pior do grupo, veio falar comigo, porque uma antiga colega nossa disse-lhe que estava na hora de me pedir desculpa. Fiquei chocada quando percebi que não se lembrava de nada. Explicou-me que, naquele tempo, o pai tinha saído de casa, a mãe não lhe ligava nenhuma e ele tinha ficado sozinho a lidar com o seu próprio sofrimento. Penso que servi de saco de boxe, fui o escape da sua raiva, indignação, negligência. Consegui sentir empatia pela sua história, mas a dor ficou cá. No fundo, não era a ele que tinha de desculpar, sinto que fui o meu maior bully, ouvi tantas vezes aqueles insultos que comecei a acreditar neles.
Na altura, o bullying era visto como uma coisa normal, algo pelo qual os miúdos tinham de passar, não tinha os contornos violentos que tem atualmente. A própria parentalidade era muito diferente, hoje estamos muito mais atentos.
“Não quero ser uma vítima”
O bullying moldou a minha personalidade, como qualquer outra experiência. Deu-me uma grande estaleca para a vida e, agora, parece que consigo safar-me de qualquer situação. Escrever ajudou-me a ultrapassar as dificuldades, aprendi a exprimir-me melhor e a criar mundos novos. Julgo que a escrita teria sempre feito parte da minha vida, mas não sei se seria uma profissional tão determinada e focada. Fui jornalista durante quase 20 anos e era muito boa a fazer entrevistas, porque percebia as pessoas. Escrevi dois romances e as personagens dos meus livros eram ricas graças a essa minha capacidade de observação.
Quando olho para trás, chego à conclusão de que sempre senti o bullying como uma fase que iria passar e que o meu futuro iria ser melhor. Não pensei que chegasse a este ponto, de escrever um livro para ajudar outros jovens que estão a passar pelo mesmo. Mas queria contar a minha história de forma realista, otimista, até alegre. Não se trata de superação, porque não houve um trauma. Afinal, todos vivemos momentos infelizes, faz parte do caminho. Não quero minimizar o que aconteceu, porque foi muito duro e é algo que me persegue a vida toda. O querer que gostem de mim, o medo de ser excluída é sempre uma questão. Mas não quero ser uma vítima. As pessoas não têm de carregar um carimbo durante toda a vida.
Inicialmente, escrevi o livro sem falar da minha experiência. Só queria abraçar jovens alvo de bullying, sem grande envolvimento. Mas, durante as apresentações do livro, senti que tinha o dever de fazer mais, para que os leitores sentissem que não estão sozinhos. Resolvi acrescentar uma introdução mais pessoal e foi horrível recordar pormenores que tinham ficado esquecidos. Era importante falar do que aconteceu, desmistificar a questão do silêncio, da vergonha, mostrar que está tudo bem e que as pessoas crescem e podem ser felizes.
Pode parecer um cliché, mas, se o meu testemunho conseguir ajudar pelo menos um jovem a não se sentir tão sozinho e a perceber que o bullying não o define, o que tive de passar já faz mais sentido. Este livro é para pessoas mais introvertidas, que têm dificuldade em falar de sentimentos, que gostam de escrever… muitas vezes têm feridas abertas e é como as barragens, se existe uma fenda, vem tudo atrás. Ser adolescente já é difícil, no que diz respeito à construção da autoestima. Se ainda têm de lidar com bullying, é muito complicado. Espero que este livro seja tão terapêutico para eles como foi para mim.