Sempre que oiço a sirene de uma ambulância do INEM, agradeço a Deus terem salvo o meu filho. O Ricardo [27 anos] era um estudante universitário, no curso de Engenharia Aeronáutica, e numa estrada conhecida por ser perigosa, no Faralhão, em Setúbal, e onde já tinha passado dezenas de vezes, despistou-se de carro. Depois de fazer uma curva, e de ter ficado virado no sentido contrário, foi embater num poste. Sofreu um traumatismo cranioencefálico muito grave que o deixou tetraplégico, totalmente dependente.
Eu andava a tratar do jardim quando ouvi a ambulância passar e, com o meu instinto de mãe, pensei: ‘Deus queira que não seja nada com o meu Ricardo.’ Liguei-lhe para o telemóvel, tocava e não atendia, até que um amigo dele de infância veio cá a casa dar-me a notícia.
Nessa altura, há cinco anos, estava desempregada já há algum tempo, depois de ter trabalhado na Portucel, na reciclagem de papel. Tinha um companheiro, dava assistência à casa, ao meu filho, à minha família, ia às compras, saía algumas vezes quando uma amiga fazia anos, por exemplo. Tinha o sonho de ver o Ricardo formar-se, começar a trabalhar, constituir família e tomar conta dos netos. O meu filho tinha o mundo aos pés. Ainda tenho alguma esperança de vir a passar por estas alegrias.
Sempre tivemos grande cumplicidade, ele é o filho que qualquer mãe deseja ter, estava sempre preocupado comigo. Eu era muito mais extrovertida do que sou, agora é muita “performance”.
A partir do dia do acidente, deixei de ter vida própria, esqueci tudo e passei a viver em prol do meu filho. Sei que nunca mais vou trabalhar. Ia pôr o Ricardo num centro de dia? Teria de trabalhar para o pagar, mais vale ser eu mesma a fazê-lo. Se é dramático para mim? É, não tenho descontos para a Segurança Social. Mas como é que consigo ter alguém a tratar dele sem pagar?
Sempre tive uma vida pacata, nunca fui de férias, mas adorava praia. Ainda não levei o Ricardo porque tenho medo de me aventurar no areal e no mar, tenho medo que ele perca o equilíbrio. Onde eu vou, ele vai comigo. Levo-o ao supermercado e vai-me dizendo a lista de compras, isso estimula-lhe o raciocínio. Não pode ficar só em casa, já bastou a pandemia, tem de falar e de ser estimulado
Desde o acidente, passou mais de um ano até o Ricardo regressar a casa. Eu só não dormia no hospital porque não me deixavam. Saía de lá e passava na igreja para rezar. Após três meses em coma, ele tinha alguma capacidade cognitiva, mas sem falar, só conseguia piscar os olhos para dizer sim e não.
Fez uma traqueostomia, ganhou duas bactérias, das mais perigosas que existem nos hospitais, e estava muito desidratado, emagreceu 25 quilos. Tinha disfagia e era alimentado, primeiro, por sonda nasogástrica e, depois, por gastrostomia percutânea (PEG). Passou pelo centro de dia LATI, em Setúbal, para ser acompanhado enquanto aguardava vaga para um centro de reabilitação, que só surgiu em São Brás de Alportel, na serra algarvia.
Deixei a minha vida aqui e fui atrás dele, aluguei um quarto e lá fiquei cinco meses. Nunca esquecerei que foi com aquela equipa de técnicos e de enfermeiros, sempre disponível para me ensinar, que aprendi o que dali em diante passaria a ser a minha vida, a tratar do meu filho. O enfermeiro José ensinou-me, as vezes que foram precisas, a fazer a transferência do Ricardo do carro para a cadeira de rodas e o contrário. Na parte da alimentação, ia ter de passar a fazer comida pastosa, gelatinosa, para que a deglutição, a cada colherada, não se transformasse num problema. Aprendi a trabalhar com as quantidades certas de espessante, três colheres de uma espécie de amido, para ficar com a textura e a consistência certas.
“Preciso de ajuda”
Tenho mais cuidados e preocupações agora do que quando ele era bebé. Não me posso enganar, por exemplo, na consistência da comida. Se ficar muito aguada corre-se o risco de a comida ir para o pulmão e seria muito grave provocar-lhe uma pneumonia aspirativa.
Quando trouxe o meu filho para casa, numa fase ainda crítica, não podiam existir distrações, como o som da televisão. Era preciso ele estar a comer concentrado e tinha de tossir após cada colher. A enfermeira explicou-me que, para ele, uma refeição era como correr dez quilómetros, ficava alagado em suor, devido ao esforço e ao cansaço.
Somos só nós os dois, 24 sobre 24 horas. Com um grau de incapacidade de 91%, ele recebe à volta de 500 euros por mês de Prestação Social para a Inclusão e só agora é que estou a tratar do meu subsídio de apoio ao cuidador informal, com a ajuda da minha comadre.
Sempre tive uma vida pacata, nunca fui de férias, mas adorava praia. Ainda não levei o Ricardo porque tenho medo de me aventurar no areal e no mar, tenho medo que ele perca o equilíbrio. Onde eu vou, ele vai comigo. Levo-o ao barbeiro, ao centro comercial, ao supermercado e vai-me dizendo a lista de compras, isso estimula-lhe o raciocínio. Não pode ficar só em casa, já bastou a pandemia, tem de falar e de ser estimulado.
Só não estou perto do meu filho nas sessões de terapia, de resto estamos sempre juntos. Tento ao máximo em casa repetir os exercícios da fisioterapia: faz exercícios com as molas da roupa, com laranjas, escreve e faz gatafunhos, atiramos a bola um ao outro, eleva pesos de 250 gramas. Mas preciso de ajuda com a terapia ocupacional. Cada sessão numa clínica privada custa €32,50 e o dinheiro angariado num almoço solidário, organizado por um grupo de vizinhos, está quase a acabar. Aí ficarei sem conseguir levá-lo à terapia.
Há pouco tempo, precisou de óculos, foram mais €170; fez uma ressonância magnética do crânio numa clínica privada, para ver se estava tudo bem com o cérebro, foram mais 250 euros. Também já criámos uma página no Facebook [Vamos Ajudar o Ricardo Bento] e ando a vender rifas para ver se consigo juntar mais dinheiro, porque ele precisa de tratamentos muito específicos e isso só pagando.
Quando passamos pelos problemas, nem acreditamos que vamos conseguir ultrapassá-los. É um grande sofrimento, pensamos que vamos desabar e morrer naquele momento. Agora é um dia de cada vez.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros