Togbenou é o meu apelido e Kwami quer dizer sábado, o dia em que nasci – na minha cultura, é habitual colocarmos esta referência. A minha família é muito simples, como em toda a África. O meu pai era um homem doente e morreu cedo. Fomos morar com o meu tio, polícia, em Lomé, a capital do Togo e, graças a ele, completei o Ensino Secundário.
Esse tio era tudo para nós. Foi difícil quando morreu numa missão policial. Como sou o mais velho de três irmãos, tive de começar a trabalhar, a acartar madeira e a vendê-la na cidade. Era um trabalho duro, mas tinha orgulho em fazê-lo.
O Togo é uma antiga colónia francesa. De 1967 até 2005, Gnassingbé Eyadéma ocupou o cargo de Presidente. Após a sua morte, o filho, Faure Gnassingbé, tomou o poder. O país vive numa ditadura e as eleições são controladas pelo governo. Existem muitos partidos políticos, mas não há uma verdadeira oposição, pois são todos corruptos. Existe um pequeno núcleo à volta do Presidente que controla os recursos do país. Há muita pobreza e mesmo quem tira uma licenciatura acaba como taxista.
Em 2015, surgiu o Partido Nacional Pan-Africano (PNP), liderado por Tikpi Atchadam, que teve a coragem de falar abertamente, na rádio e na televisão, sobre tudo o que estava mal no governo. E muitos, como eu, começaram a ouvi-lo. Para a nova geração, o PNP representava a esperança. Comecei a participar em reuniões e ações de sensibilização. O nosso objetivo era mudar a Constituição, limitar os mandatos presidenciais. As pessoas ouviam-nos.
A 19 de agosto de 2017, o PNP organizou uma grande manifestação a exigir o fim da ditadura. A manifestação tinha sido aceite, era legal e pacífica. Mas a polícia cercou a multidão, começou a disparar e foi o pânico. Terão sido mortas 12 pessoas.
A partir daí, começou a violência. Espiões denunciaram quem participava nas atividades do partido. Homens encapuçados arrombaram-me a porta de casa, agrediram-me, disseram-me que o PNP era um partido de terroristas. Fui detido e interrogado para que denunciasse outros militantes. Soltaram-me, mas sempre que saía de casa via um carro de militares à porta, a espiar-me.
A sede do PNP foi queimada e muitos dos responsáveis fugiram do país. Também decidi fugir, até que o ambiente acalmasse. Primeiro fui de camioneta para o Níger, a seguir eu e um casal amigo pagámos a traficantes que nos levarem até à Argélia, onde trabalhámos na construção civil. Os carros vão a abarrotar de pessoas; há gente que morre sufocada com o calor.
Na Argélia, como estávamos clandestinos, tínhamos de fugir sempre que víamos a polícia. Chamavam-nos de “africanos”, todas as noites prendiam pessoas e deixavam-nas na fronteira com o Níger, no meio do deserto, sem telemóveis – algumas morreram por lá. Nós também fomos apanhados.
“Continuo sem paz”
Um dia o meu amigo Ismael disse que conhecia pessoas na Líbia, que nos iriam ajudar. Pagámos novamente a traficantes, mas, mal entrámos na Líbia, enfiaram-nos numa prisão. Não são como aquelas que conhecem aqui, são lugares horríveis, com insetos por todo o lado e muito calor. Dormíamos 50 numa cela pequena, éramos agredidos, praticamente não comíamos e mantinham-nos ali para pedirem resgates às nossas famílias.
Os homens eram tratados como animais. Quem sabia fazer alguma coisa, era obrigado a trabalhar como escravo. Para as mulheres era muito pior, eram violadas, mantidas sem roupas. Ainda é difícil recordar esses tempos, muitas pessoas morreram, como a mulher de Ismael, que foi agredida pelos guardas.
Estive na prisão um ano e sete meses. Um dos guardas ajudou-me a fugir e arranjou-me lugar num barco, na noite de 16 de setembro de 2019. “Que Deus tenha piedade de ti”, disse-me. Não tinha outra opção, sabia que se ficasse na Líbia iria morrer. Íamos 61 pessoas a bordo, amontoadas num barco insuflável pequeno, com bidões de gasolina à volta, mal nos conseguíamos mexer. Estivemos umas 15 horas no mar, até sermos avistados por um avião, que deve ter dado a localização ao navio de resgate Ocean Viking.
Só tivemos autorização para desembarcar na Sicília a 24 de setembro. Ficámos num centro de acolhimento e comunicaram-nos que seríamos redistribuídos por vários países. Como não tinha amigos ou familiares na Europa, disse que iria para qualquer país que me aceitasse. Ficou decidido que 20 pessoas do nosso grupo viriam para Portugal.
Tivemos de esperar mais de um ano até que a delegação portuguesa nos foi buscar, a 7 de outubro de 2020. Segui para o Porto e fiquei alojado na Fundação Allamano, na Maia, que me ajudou na integração, com aulas de português, refeições e algum dinheiro.
Em abril de 2021, fui selecionado para um estágio de quatro meses na IKEA de Matosinhos. Quando terminou, eu e outro colega fomos convidados a ficar. Estou feliz por estar aqui. Tenho colegas generosos que me ajudam e me dão bons conselhos. Para o responsável da equipa, sou como um irmão mais novo.
Mas agora não sei o que fazer. O protocolo celebrado com a Fundação Allamano permitia-me ficar 18 meses, o prazo acabou em abril e já vieram dizer que tenho de me ir embora. Vim com muita esperança. Queria ser livre, ser reconhecido legalmente por um país, mas agora na fundação garantem que não podem fazer nada.
Até já me disseram que não devia ter vindo para Portugal. Um dos responsáveis disse mesmo: “Não sou o teu pai, não te disse para atravessares o mar e vir para a Europa sem documentos.” Uma pessoa a quem contei a minha história, as minhas coisas mais íntimas. Fiquei chocado e chorei, não sou uma mercadoria. A minha esperança é a IKEA, onde prometeram ajudar-me a arranjar casa, mas estou com medo, não sei como vou sobreviver. Só sei que quero integrar-me, já comecei a falar português, trabalho há um ano e pago os impostos como toda a gente. Quero ficar, mas ninguém me ouve, nem o SEF, ninguém. Há cinco anos que saí do Togo e continuo sem paz.