Na primeira pessoa: “Não sou menos cigana porque estudei e me tornei uma mulher independente”

Na primeira pessoa: “Não sou menos cigana porque estudei e me tornei uma mulher independente”

Abri o meu escritório há dois meses, em parceria com dois colegas de Esposende, mas estou sozinha em Torre de Moncorvo. Não quero tornar-me advogada só de pessoas de etnia cigana, trabalho para quem vier ter comigo. Por agora, tenho trabalhado bastante na área de direitos reais, por exemplo na compra e venda de uma casa ou a tratar de testamentos, mas antes, com o meu patrono, trabalhava em direito do trabalho e direito criminal, que considero ser o mais aliciante.

Comparando Torre de Moncorvo, no Interior, no distrito de Bragança, com uma grande cidade, a criminalidade é menor, mas vê-se um pouco de tudo. Os homicídios podem ser chocantes, mas é nesses casos que mais gosto de trabalhar, embora seja sempre mais complicado defender o culpado. Só não aceito casos de violação – é a minha única objeção de consciência.

Sempre sonhei ser juíza desde que comecei a ouvir dizer que as decisões em relação à etnia cigana nem sempre eram imparciais. Ao começar a conhecer a lei e os pressupostos que devem ser respeitados, faziam-me confusão certas situações que envolviam as pessoas da comunidade. Queria conseguir fazer justiça e reverter a situação. Agora, vou ganhar experiência e, daqui a meia dúzia de anos, quando a minha filha for mais crescida, concorro ao Centro de Estudos Judiciários pela via profissional.

“Tens de fazer a diferença”

Comecei a perceber a diferença que havia entre mim e as outras raparigas ciganas principalmente quando fui para a faculdade no Porto, por volta dos 20 anos. Depois do ensino secundário – em que o meu pai não se deixava levar pelas minhas manhas, nem que fosse para faltar só uma manhã à escola –, algumas quiseram dar seguimento aos estudos e já não puderam, porque a faculdade é longe – a mais próxima fica, pelo menos, a uma hora de casa –, e aí o acesso à educação era-lhes vedado. Mas comigo isso não aconteceu. Quando terminei o 12º ano, o meu pai começou logo a procurar a melhor faculdade de Direito para mim.

Na infância e adolescência, tinha uma vida como a de qualquer outra criança, cigana ou não. Os meus pais sempre me disseram, a mim e aos meus irmãos [tenho duas irmãs, de 32 e 26 anos, mais um irmão de 18], para continuar: “Tens de fazer a diferença.”

Na comunidade, entre as pessoas mais próximas, havia quem discordasse de eu ir estudar para fora, mas isso não fazia diferença na minha vida. Ouvíamos comentários menos bons, mas o meu pai nunca lhes deu ouvidos, ignorava-os. Diziam-lhe que eu não ia para o Porto estudar, ia passear; não estava bem ir para lá sozinha e tirar a carta de condução.

Não ganhei má fama, mas penso que a maior parte das pessoas, sem serem apenas as da comunidade cigana, achava que eu não conseguiria terminar o curso.

Respeito a minha comunidade e a forma como quer viver e trabalhar, normalmente a vender, mas não concordo com alguns aspetos. Há valores que não aceito para a minha filha, agora com 3 anos, como deixar de estudar aos 13 para casar, que não possa ir para a faculdade, não possa ter amigos rapazes que não sejam ciganos ou não possa sair para jantar fora com as amigas.

Respeito a minha comunidade e a forma como quer viver e trabalhar, mas não concordo com alguns aspetos. Há valores que não aceito para a minha filha, como deixar de estudar aos 13 anos para casar, ou que não possa ir para a faculdade, não possa ter amigos rapazes que não sejam ciganos ou não possa sair para jantar fora com as amigas

Porque é que viajar com amigas ou ir tomar um café com amigos nos haveria de definir como pessoas ou tornar-nos menos ciganas? As outras mulheres da comunidade não o fazem porque fica mal aos olhos dos outros. Eu não me importo com o que pensam.

Todos temos direito à liberdade de expressão e a fazer o que bem entendermos, sem prejudicar os outros. Hoje, só não muda quem não quer. Mas viver numa família muito conservadora pode não ajudar. Nesses casos, a força da família é muito maior do que a da mulher sozinha, e são ainda poucas as mulheres a arriscar ter uma vida diferente.

Não incentivo as minhas amigas a fazerem quaisquer mudanças. Não quero ser vista como a causa do problema. Mas já passei por uma situação em que uma mãe e a sua filha de 15 anos vieram ter comigo para me pedir ajuda para falar com o pai dela. Então, fui ter com ele para falar sobre deixar a filha continuar a ir à escola.

Expliquei-lhe o meu caso, e que o facto de estudarmos não impede de continuarmos a cumprir todas as tradições ciganas. Tenho muito orgulho em ser cigana. E consegui que essa menina voltasse a estudar.

“Ninguém tem o direito de cortar as asas”

Não sou menos cigana porque estudei, fiz o meu percurso e me tornei uma mulher independente e realizada. Isso só nos torna mulheres mais felizes e completas, sem sermos dependentes de um homem – um conselho, aliás, que sempre ouvi do meu pai.

Na universidade, os meus professores, quando souberam que era cigana, até ficaram felizes por ali estar. Na altura, passei por uma situação em que o meu pai teve um problema e tive de faltar às aulas – todos facilitaram imenso e ajudaram-me.

Nunca ter ouvido expressões como “vai vender na feira” é um sinal de mudança, sobretudo na minha geração, mas na dos mais velhos ainda há muito para fazer, e nem sei se alguma vez a mudança acontecerá.

É preciso mudar a forma de educar meninas e meninos. De que vale ter uma mulher com uma opinião mais aberta se a do homem se mantiver conservadora? Talvez só quando eu for avó se irão sentir mudanças significativas.

Estamos a progredir e vamos no bom caminho, mas quando vou a escolas fazer palestras, noto que há crianças com sonhos, mas também entraves familiares que não as deixam avançar. Ninguém tem o direito de cortar as asas e não deixar concretizar o sonho. Espero que a minha filha tenha gosto em estudar e siga a profissão que quiser.

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