Alguns dos estranhos rituais mafiosos
Sakai media mais de um metro e oitenta de altura, tinha ombros largos, mãos e pés grandes, uma cicatriz de dois centímetros e meio sobre um olho e era conhecido pela alcunha Tamanho Grande, numa alusão à dimensão do seu pénis. Aos 20 anos, já estava detido por homicídio. Foi na prisão que conheceu Oda, membro de um gangue ligado à Yakuza – aquela que é hoje a maior máfia do mundo, com um estatuto quase legal e mais de 78 mil filiados (a lista dos seus membros é pública). Sem estudos e com o histórico prisional que tinha, depois de cumprir pena, Sakai não conseguiu arranjar um emprego. Decidiu então seguir o conselho que Oda lhe dera anos antes e fazer uma visita ao gangue Yakuza. Admitido como aprendiz na organização, passou seis meses a ser observado até que, finalmente, foi aceite como membro daquela estrutura mafiosa.
No dia em que cumpriu o ritual de iniciação, uma espécie de batismo para as máfias, Sakai saboreou uma taça de saké misturado com escamas de peixe e sal, adotou uma nova identidade e ouviu aqueles que seriam, a partir dessa data, os deveres que nunca poderia quebrar: “Agora que bebeste da taça do chefe e ele da tua, deves lealdade à Família e devoção ao teu chefe. Mesmo que a tua mulher e os teus filhos estejam a morrer de fome, mesmo que a tua vida esteja em perigo, o teu dever é agora para com a Família e o chefe. O chefe é o teu único parente; segue-o, passando pelo fogo e pela água.”
Sakai estava impedido de desonrar a mulher ou os filhos de outro companheiro, de ocultar dinheiro do gangue, de recorrer à polícia e, claro, de revelar o que se passava dentro da Yakuza. Se infringisse um destes mandamentos, o castigo mais leve que poderia sofrer era perder um dedo. No pior dos casos, a morte ou o linchamento.
Este é um dos episódios de admissão de novos recrutas contados em Mafia Life (A Vida da Máfia), o livro em que Federico Varese, professor de Criminologia na Universidade de Oxford, imerge na vida real de cinco das maiores máfias do mundo: a Yakuza japonesa, a Cosa Nostra (Sicília), a máfia ítalo-americana, as tríades de Hong Kong e a máfia russa. Há 30 anos que o autor se dedica a investigar – quer para livros quer no âmbito académico – como é a vida real dos membros das maiores e mais antigas organizações criminosas e como estas organizações espalham os seus tentáculos pelo mundo.
Tudo começou precisamente na Rússia, onde viveu uma temporada que apanhou o fim da União Soviética. “O meu interesse começou em finais de 1980, inícios de 1990. Eu queria estudar um tipo de transformação social: o fim do regime, o início da democracia e o capitalismo num país enorme. Era a minha oportunidade, algo que aparece uma vez na vida, de ver uma transformação destas. Quando estava lá, percebi que havia muito crime organizado e criminalidade de máfia. Foi aí que conheci uma das personagens que abordo no livro.”
Para a obra lançada agora em Portugal pela Desassossego, em que retrata como é a vida, o amor e a morte no seio do crime organizado, Federico Varese transportou as suas investigações de décadas: entrevistas frente a frente com alguns dos maiores criminosos, escutas telefónicas e relatórios policiais inéditos. Estava determinado em mostrar quem são, na verdade, estes homens que o cinema venera e que a maioria dos mortais imagina como durões invencíveis saídos de um filme de James Bond. Varese deixou-se surpreender: eram, afinal, pessoas mais parecidas connosco, comuns mortais, do que alguma vez imaginara. “Quando falo com estas pessoas, quero saber o que elas pensam do mundo. E, inevitavelmente, ao início não te dizem muito, mas depois acabam por contar mais, porque é natural que os humanos falem de si próprios.Tento estar o mais seguro possível. Não gravo as conversas. Aprendi-o na minha primeira entrevista. Quando parei o gravador, o entrevistado disse: OK, agora podemos falar”, conta Varese à VISÃO, num hotel no centro de Lisboa.
Outra das descobertas surpreendentes que fez durante o seu trabalho de campo foi que, afinal, não é só o cinema que tem fascínio pela máfia. “O que mais me interessou foi ver como as máfias copiam o cinema. Os mafiosos adoram filmes e adoram copiá-los. Acham-nos fascinantes, sabem de cor os diálogos de O Padrinho [o icónico filme de Francis Ford Coppola que retrata a vida da mafiosa família Corleone] e até começaram a aprender italiano depois do filme.”
Os rituais e a morte
Nestas cinco máfias, o acesso está vedado às mulheres. São sociedades exclusivamente masculinas e ninguém sabe bem explicar por que razão isso acontece. Varese adianta uma hipótese: “Os mafiosos acham as mulheres muito perigosas. Não há nada de que tenham mais medo do que o poder do amor.” A um mafioso pede-se que refreie as suas emoções, que ponha a irmandade acima da família e que sacrifique mulher e filhos, se for preciso. Talvez por isso lhe tenha marcado especialmente o caso de Nicola, italiano residente em Palermo, membro da Cosa Nostra e filho de um conhecido mafioso.
Quando encontrou Nicola, aquele estava tão louco de amor por Amalia que começara a partilhar com ela vários segredos sobre a máfia siciliana: num dia contou-lhe que fazia cobrança de dívidas, noutro que foi nomeado chefe, e noutro encenou-lhe até uma cerimónia de iniciação, o ritual mais sagrado para aquela organização secreta. Ensinou-lhe que ela tinha de picar o dedo, depois teria de cuspir sangue e, no final, teria de segurar a imagem de um santo nas suas mãos em concha, enquanto ele a queimaria e repetiria com ela esta frase: “Se trair a Cosa Nostra, a minha carne transformar-se-á em cinzas como esta imagem.”
Os ritos de iniciação da máfia da Sicília e de outras partes do mundo não são propriamente violentos, mas são desenhados para impressionar: “É como assinar um contrato, mas ali há um investimento emocional. Eles querem mostrar-te o que é a organização e querem impressionar-te e assustar-te”, explica o professor especialista em máfias.
Se na Cosa Nostra a fotografia de um santo nas mãos de um recruta, podendo queimar-lhe as mãos, na máfia de Hong Kong obrigam os iniciados a beber de uma taça o sangue de uma galinha ou dos outros companheiros. Já os russos preferem assinalar a passagem à máfia tatuando-se de uma forma rudimentar e dolorosa, com recurso a uma agulha e uma lâmina de barbear. Para um vor, que é obrigado a mudar de identidade e a começar uma nova vida, o corpo é a narrativa de todos os seus feitos e fracassos enquanto membro da máfia. E se descobrirem um impostor que ostente tatuagens às quais não tem direito, não hesitarão em castigá-lo: aqueles terão de removê-las com a ajuda de uma faca, de uma lixa, de um pedaço de vidro ou de um tijolo. Em certos casos, amputam-se dedos.
Este seria um bom retrato para os filmes de Hollywood. Já a história de Nicola, da Cosa Nostra, e da sua amada Amalia não. Mas para Varese, embora aquela história não o apresente de forma glamorosa, “é muito precisa”: “Quando os descrevemos como super-homens tornamo-los invencíveis, mas se os descrevermos como pessoas normais, vemos como podemos explorar as suas fraquezas. E creio que isso nos ajuda a derrotar a máfia.”
Ao partilhar os pormenores da sua vida de mafioso da Cosa Nostra com a namorada, Nicola colocou-se em perigo. Os mafiosos matam – muito – mas também correm o sério risco de serem mortos quando quebram as regras da organização. Varese não se esquece da imagem daquele homem de negócios que conheceu numa entrevista. Tinha sido torturado pela máfia porque não pagara uma dívida. Torturado com um secador de cabelo, no seu apartamento, à frente da mulher e dos filhos, e de tal forma que ficou com lesões para a vida nos pulmões.
A vingança é uma motivação poderosa para os mafiosos. Matam-se inimigos que sejam uma ameaça, companheiros traidores e também familiares – por pura chantagem ou quando se julga que estes sabem demasiado. Por isso, no interior destas organizações criminosas, também se é treinado para matar. A ideia de que no seio das máfias, nem todos matam “é falsa”, diz Varese, que no livro descreve, por exemplo, como um chefe de Palermo ensina o seu sucessor a disparar com luvas de látex (para depois a arma não escorregar) ou a usar um fertilizante químico para ocultar os vestígios de pólvora das mãos. A arma mais fiável para a Cosa Nostra é um revólver de calibre .38. Mas, se o alvo for alguém mais protegido, estes mafiosos não hesitam nas medidas extremas: bazucas, lança-chamas ou explosivos. Para se livrarem do corpo, preferem os banhos de ácido. Mas até 1980, usavam um método mais original: queimavam os corpos em grelhadores concebidos especificamente para esse fim.
Na máfia siciliana há até uma expressão própria para referir a eliminação de um cadáver sem deixar vestígios: lupara bianca.
Os russos cortam os corpos em pedaços e espalham os restos no campo ou numa floresta. A faca é a arma de eleição das tríades de Hong Kong. Já a Yakuza japonesa prefere a espada, de preferência bem grande. Em 2016, o executivo de um gangue da máfia japonesa tentou matar um dos seus rivais. Usava uma espada de 70 centímetros de comprimento, como as dos samurais. Afinal, dizem-se descendentes deles.