Depois de a morte de José Mário Branco, Camané só pode ter sentido uma enorme orfandade musical. É que o Zé Mário produziu os seus discos ao longo de 20 anos, moldando o seu conceito trazendo para o fado as suas ideias. Ao fado de Camané, além de reforçar aquela coisa a que os fadistas chamam de verdade (que Camané sempre teve) concebeu um certo depuramento musical, um menos que é mais, em que a guitarra não compete com a voz. Conceito que de resto se expandiu no mundo do fado.
Já sem José Mário Branco na produção, Camané arriscara, e bem, uma parceria com Mário Laginha, num disco com um conceito fechado na ideia de fado ao piano e de encontro entre duas personalidades musicais fortes. Desta vez, para superar Zé Mário, Camané rodeou-se de uma multidão. Pode dizer-se que o maior conceito deste Horas Vazias é uma ausência de conceito. Ao exemplo do que faz grande parte dos fadistas contemporâneos de renome, Camané pediu composições aqui e ali para construir um repertório que dá novos fados aos fados. Mas ainda assim é um álbum com os dois pés na tradição, em que reinventa mesmo alguns fados tradicionais.
Para os arranjos foi buscar um grande mestre do jazz português, que dá um toque de swing aqui e ali, mas sem excessos, encontrando mesmo espaço para o saxofone de Ricardo Toscano (em “Às vezes há Silêncio”) ou o acordeão de João Barradas. Logo de início esse efeito jazzístico em” Que Flor se Abre no Peito”, surpreendente tema de Pedro Abrunhosa. Logo a seguir uma magnífica adaptação de um poema de Sebastião Cerqueira ao “Fado da Bica”, onde se ouve” Posso não saber escrever mas amar não custa nada”. Jorge Palma também escreveu um belíssimo fado para Camané, “Noite Transfigurada”. Mais espantoso talvez seja Carminho, que adaptou um poema de Júlio Dinis, com um tom de fado de Coimbra, em “Nova de Vénus”. Camané canta ainda “As Ilhas Afortunadas”, de Pessoa, no “Fado Menor”. E há ainda a combinação de uma música de José Mário Branco com um poema de Amália, “Eu Tenho Dois Corações”, recuperada do disco Amélia com versos de Amália, de Amélia Muge. É um dos temas mais interessantes deste disco, e também dos que foge mais ao fado, juntamente com “Meu Amor”, uma belíssima composição do guitarrista Miguel Amaral. Pelo caminho ainda há espaço para temas de Vitorino e Amélia Muge, e o disco termina em grande e de forma sintomático com “Havemos de nos Ver Outra Vez”, de Teresa Muge, com um sexteto de cordas. Horas Vazias é um disco em que tudo cabe e nada se perde.