Não é difícil encontrá-lo. Anda pelas ruas de Lisboa, do Chiado à Mouraria, passando pela Baixa ou o Martim Moniz. E é impossível ficar-lhe indiferente. Não é do tipo que pára em frente a uma esplanada, à espera que os turistas lhe paguem pelo entretenimento. Vai deambulando e, de repente, solta um canto capaz de arrepiar. Um lamento, numa língua que não conhecemos. Quem costuma cruzar-se com ele, sabe que canta sempre a mesma música – como se nela coubesse tudo o que tem a dizer. Não saberá que se chama Alì Regep. Um romeno de origem turca, imigrante ilegal, a viver na rua, que quando tem problemas com a polícia, mostra os únicos ‘documentos’ que traz consigo: o contacto do maestro Mario Tronco e o passe do Rock in Rio, onde a Orquestra Todos atuou este ano. Como se fossem o seu bilhete de identidade.
Por aqui se vê que a Orquestra Todos é mais do que um projeto musical. “É um espaço de integração de pessoas com vidas e culturas muito diferentes; de inclusão através da música”, diz, ao JL, Giacomo Scalisi, co-organizador do festival Todos – Caminhada de Culturas, no âmbito do qual surgiu o projeto. Passado um ano de ensaios e concertos em palcos como São Luiz, Aula Magna, Rock in Rio ou Gulbenkian, sai, finalmente, o seu primeiro disco.
Espreitámos um ensaio, no espaço Sou, ao bairro dos Anjos, em Lisboa, e encontrámos um mundo. O Alì não veio – “É um homem de rua, um espírito livre. É difícil integrá-lo… Muitas vezes não aparece”, conta Pino Pecorelli, o diretor musical da Orquestra. “Tê-lo é, só por si, um enigma. Não tem telefone, nem morada”, acrescenta Giacomo. Fica a dúvida: a sua passagem pela Orquestra terá chegado ao fim?
Max Lisboa também está ausente, mas a sua história é outra. Chegou do Brasil há oito anos, em busca de melhores condições de vida, mas acabou a tocar para os turistas. Hoje, é um dos três músicos que também compõem para a Orquestra (autor de dois temas do disco: O Grito da Terra e Karam e Lampião), uma experiência que mudou o rumo da sua vida. Deixou a rua e prepara-se para gravar o seu próprio disco. A falta é pontual. Foi passar férias ao seu país e volta a juntar-se ao grupo já este sábado, 28, para o concerto no Festival Músicas do Mundo, em Sines.
É assim esta Orquestra. Uma casa aberta a músicos de todas as origens que, por alguma razão, vieram parar a Lisboa. Pode-se entrar para ficar ou estar apenas o tempo que se quiser, e depois partir. “Queremos que seja um ponto de encontro. Que todos os músicos que cheguem a Lisboa venham ter connosco. É um laboratório aberto”, afirma Pino, com uma grande dose de entusiasmo. É que Mario Tronco e Pino Pecorelli já têm os olhos postos no futuro. No percussionista argentino que está prestes a chegar. Na voz feminina africana que continuam à procura. Ou nos bairros dos arredores de Lisboa, como a Cova da Moura, que dizem ser o próximo território musical a explorar.
Por enquanto, está encontrada “a primeira pedra da casa”. Catorze músicos oriundos da Europa (de Portugal a Itália, passando pela Roménia, Reino Unido e Alemanha), de África (Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique) e da América Latina (Brasil, Argentina). No ensaio, formam um grande círculo, onde cabem instrumentos como a cítara, o djembé, a kalimba, o contrabaixo, o trombone, teclados e guitarras, e as histórias de cada um. De Rubi Machado, uma moçambicana de origem indiana, que trabalha na loja de bijuterias do marido, no Martim Moniz, e que não esconde o seu grande sonho – “Gostava de ter uma carreira como cantora, mas não sei se conseguiria viver só disso”. Ou de Susana Travassos, natural de Vila Real de Santo António, que tem usado a música como forma de intercâmbio entre as culturas portuguesa e brasileira, tendo já editado o seu primeiro álbum, Oi Elis, constituído por versões de músicas de Elis Regina, cantadas ‘à portuguesa’.
No centro do círculo, o maestro e o diretor musical fazem das mãos as suas batutas. Mal falam português. Quando é preciso corrigir ou sugerir, não se servem de palavras – entoam aquilo que querem ouvir. E a Orquestra vai atrás. Porque aqui a música fala mais alto.
A MÚSICA É A MINHA LÍNGUA
Tudo começou em 2009, quando a Orquestra de Piazza Vittorio atuou na 1.ª edição do Todos – Caminhada de Culturas, um festival enraízado nos bairros do Martim Moniz e Mouraria, que propõe uma programação artística intercultural. Tratava-se de um grupo formado por 18 músicos, imigrantes do bairro de Esquilino, em Roma, provenientes da Europa, África do Norte ou da América Latina, criado pelo maestro Mario Tronco, em 2002. “No fim do concerto, no Largo do Intendente, o Mario comentou: ‘Que bonito. O público é como a Orquestra, multicultural'”, recorda Giacomo Scalisi, que aproveitou a deixa para lhe lançar um desafio. Criar uma Orquestra, a partir da experiência da Piazza Vittorio, que fosse à procura do som dessa “nova Lisboa: indiana, africana, sul-americana”. O maestro aceitou e chamou Pino, baixista e contrabaixista da Piazza Vittorio, para co-dirigir o projeto, que conta desde o início com o apoio do Programa de Desenvolvimento Humano da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa.
Seguiu-se um ano de procura. “Queríamos músicos profissionais, mas não no sentido estrito do termo Não tinham que saber ler partituras, mas, sim, tocar bem o seu instrumento, ter cultura musical, e, sobretudo, serem músicos ‘generosos’, com vontade de dar e receber”, explica ainda Giacomo, sublinhando que o intuito nunca foi encontrar “estrelas”. Embora integrem a Orquestra dois nomes bem conhecidos do público português: João Gomes (nos teclados), ligado a projetos como Cool Hipnoise ou Orelha Negra, e Francesco Valente (no baixo e contrabaixo), dos Terrakota, que esteve encarregue de “fazer a ponte” entre os músicos e a direção.
Em meados de 2011, o Sport Clube do Intendente, um edifício aparentemente devoluto no Largo do Intendente, tornou-se o palco dos ensaios, por onde passaram mais de 30 ‘candidatos’. Não houve audições. A lógica era, e continua a ser, a do “laboratório aberto” – os músicos chegam e encontram, ou não, o seu lugar. E, com a mesma liberdade, se foi construindo o repertório. “O ponto de partida era a experiência da Piazza Vittorio, mas não queríamos reproduzi-la, até porque não íamos encontrar o mesmo tipo de músicos. A primeira semana foi de conhecimento, depois a música chegou, pouco a pouco. Não fomos nós que criámos a sonoridade da Orquestra. Foram os músicos”, contam Mario e Pino.
Intendente, gravado entre dezembro de 2011 e março deste ano. Uma viagem à volta do mundo em 12 temas, entre originais e versões de canções populares (como a napolitana ‘Jesce Sole’ ou a indiana ‘Ankhon Mein Tum Ho’). “É a primeira ‘fotografia’ da Orquestra”, refere Giacomo. Se fosse hoje, o retrato já seria diferente. Há mais músicos e três músicas novas: um tema popular romeno, outro de Bollywood e uma versão da ‘Bacalao con Pan’ do grupo afro-cubano Irakere.
Tudo leva a crer que a Orquestra Todos pode vir a seguir as pegadas da ‘irmã’ Piazza Vittorio, que conta já uma década de vida, três discos e uma série de tournés pelo mundo inteiro – “O futuro está nas mãos dos músicos”, garante Pino. Até ver, marque na agenda: este sábado, 28, a Orquestra sobe ao palco do Festival Músicas do Mundo, em Sines; a 25 de agosto viaja até ao Festival Roccella Jazz, em Itália; e a 14 de setembro toca em casa, na 4.ª edição do Todos – Caminhada de Culturas, com músicos da Piazza Vittorio.