Não é de hoje a sua “paixão” pela América Latina. Quando, há sete anos, visitou Buenos Aires, Cristina Branco deixou-se cativar não só pela estreita relação entre o quotidiano e a cultura, como também pelo “orgulho que [os argentinos] têm naquilo que é deles”. Dessa viagem, viria a resultar a sua interpretação de uma canção popular argentina, Alfonsina y el mar, do álbum Ulisses (2005). Mas não só. Permaneceram “memórias” e uma sensação de familiaridade entre nós e aquela “gente”, que se reflete também através da música.
A semelhança entre o fado e o tango surge, agora, como ponto de partida para o seu novo álbum, Não há só tangos em Paris, produzido por Pedro Moreira, que será lançado no próximo dia 28, pela Universal. São 16 fados tangos que viajam entre Lisboa, Buenos Aires e Paris, para nos falar de sentimentos que não conhecem fronteiras, nem idiomas: o desespero, a angústia, o amor, a solidão e, sobretudo, a saudade. E, como cantora de poetas que é, Cristina Branco fá-lo a partir de uma magnífica seleção de textos, que inclui autores como António Lobo Antunes, Manuela de Freitas, Vasco Graça Moura, Jacques Brel ou Charles Baudelaire.
À palavra e à música, a cantora junta ainda a “nostalgia” de recordações ligadas aos três ‘destinos’ do disco. Desde a “flor vermelha no cabelo cor de azeviche da Amália”, o “recorte do bandoneón daquela menina sentada no passeio em La Boca” até às “memórias de Paris, dos emigrantes desvalidos e furtivos”, como conta.
De tudo isto, resulta um álbum, no mínimo, surpreendente. Uma mistura de fado com tango, que corre sem lhe sentirmos as ‘costuras’, ao sabor da voz profunda e sensual de Cristina Branco, e da sua banda, composta por guitarra portuguesa (Bernardo Couto), viola (Carlos Manuel Proença), piano (João Paulo Esteves da Silva), acordeão (Ricardo Dias) e contrabaixo (Bernardo Moreira).
JL: Como surgiu a ideia de misturar estes dois géneros musicais?
Cristina Branco: Há cerca de dois anos, estávamos ‘na estrada’ e passou na rádio o tema cubano Dos Gardenias, que apesar de já ter ouvido milhares de vezes, deixou-me uma sensação de desconforto confortável, uma vontade enorme de cantá-la. Desafiei a banda a fazer um arranjo, e esse tema começou a fazer parte do nosso alinhamento de estrada. Até que começámos a pensar em ritmos latino-americanos, e em criar uma envolvência do fado com este tipo de sonoridade. O fado é muito sério, extático, e queríamos desconstruir isso. É então que surge o tango, uma espécie de ‘irmão feliz’ do fado, porque sendo dramático, é também alegre e histriónico.
Procurou uma unidade temática para este disco?
O que o uniformiza é a predisposição para olhar o fado e o tango como ‘irmãos’ ou até como ‘amantes’, porque há uma sensualidade que lhes é comum. Ambos são vincadamente sexuais e os temas rodam sempre à volta do mesmo, embora nós sejamos mais pudicos do que os argentinos. E apeteceu-me brincar com tudo isto: fazer um disco onde o fado e o tango se misturassem e houvesse a subtileza e sensualidade presente nos dois géneros, e fazê-lo de uma forma muito própria. Não canto os tangos como tangos, nem tive sequer essa pretensão. É a minha interpretação do tango e, também por isso, não fui buscar os mais arrebatados, mas os que falam da cidade, tal como o fado fala de Lisboa.
O mesmo acontece com os fados: canta-os ‘à sua maneira’…
Sim, mais ou menos próxima do universo fadista. A verdade é que quando canto fado, sou fadista, e gosto de me redescobrir, de redescobrir o poema e a música quando estou em cima do palco e, ali, é só fado. Mas não me cinjo a esse género, preciso de outros ou de música feita para mim, para me poder apropriar de uma forma mais livre e aprender outras coisas. Aprendo muito com o que canto e o fado não me chegou. No entanto, é a base da minha sonoridade. Aliás, neste disco, a editora perguntou-me se não seria interessante excluir a guitarra portuguesa, e eu não acho isso interessante. Poderia fazê-lo num projecto paralelo, mas o meu tem sempre guitarra portuguesa. Posso não ser fadista, mas aquele som está-me no sangue, e preciso de ouvi-lo para ter asas para voar. É imprescindível na minha linguagem.
Já deu voz a textos de Camões, Shakespeare, Zeca Afonso, entre tantos outros escritores. Qual é, para si, a importância da palavra?
Quase toda. Posso gostar muito de uma música e até dizer que, para um público estrangeiro, a palavra passa a ser secundária, mas se não houver a minha emoção a cantar e a intenção de passar uma mensagem, as pessoas nunca irão entender. O poema é tudo, não dá para lhe fugir. Tenho que gostar do que estou a cantar, se não o público vai sentir que o estou a trair porque não sei fingir. Além disso, há a questão mais do que referida, e que subscrevo, de que trazer a Literatura para a Música, é trazê-la para o povo. De repente, as pessoas que não conhecem ou não leram determinados autores, podem trautear uma letra de Camões, Pessoa ou Lobo Antunes, e isso é estupendo.