Triste Fado
por José Alberto Sardinha
Sob o título Fado maior e menor, Rui Vieira Nery fez publicar no JL não uma crítica, mas um virulento e descomposto ataque à minha pessoa, à minha idoneidade, à minha obra de investigação da música de tradição oral e particularmente ao meu último livro A Origem do Fado. Depois de elogiar todas as obras que se têm debruçado sobre o Fado, diz, em suma, que a minha é a única – a única – imprestável. Não admira: o meu livro é o primeiro a desmontar e reduzir a um cisco a sua mirabolante teoria da origem afro-brasileira do Fado. Tal como Espinoza, esforço-me por não rir nem chorar dos atos humanos, nem odiá-los, mas simplesmente compreendê-los. E a explicação do destempero está à vista: os bonzos da cultura dominante não aceitam desvios ao dogma, nem admitem estranhos ao couto, que pensem pela própria cabeça, critiquem e incomodem.
A mais interessante constatação a retirar do texto de Nery é que admite a improcedência, quando vistos isoladamente, dos três alicerces em que baseia a sua teoria da origem afro-brasileira do Fado (sensualidade da dança, melodias improvisatórias sobre estruturas harmónicas repetitivas e ritmos sincopados). Só que – adianta – esses três elementos devem ser perspetivados em conjunto e uma vez reunidos no mesmo fenómeno nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, passam a ser inteiramente corretos. Ou seja, segundo Nery, a Epistemologia consegue transformar em válidos três argumentos inválidos, desde que estes se conjuguem. Eu, que sou um simplório e um ingénuo, confesso não atingir tão altas esferas de raciocínio. Por este andar, as Ciências Sociais transmutar-se-ão em assunto de fé. Acredite, pois, quem quiser…
Em verdadeiro estado de desorientação pela esmagadora prova que carreei no meu livro em refutação da sua tese, Nery nada mais faz do que recorrer à violência verbal na proporção inversa da razão que lhe (não) assiste. E é assim que afirma que eu me situo fora dos requisitos mínimos da produção académica, que não tenho bases teóricas, que pratico “uma etnografia empírica descontextualizada, sem perspetivas críticas e problematizantes”. Ou seja, que não pertenço ao grémio. Pois não – e ainda bem! Não teorizo sobre coisas que desconheço, nem cultivo o género da “temática da problemática da super-estrutura do registo epistemológico”, nem faço enquadramentos balofos sobre a “criação de sinergias dinâmicas e progressivas”, ou sobre “contextos sócio-culturais da modernidade no espaço e no tempo”.
Assim sendo, só tenho de estar feliz por não integrar o rebanho do pensamento único, nem a confraria do elogio mútuo. Sou um investigador livre e independente em toda a aceção. Não pertenço a capelinhas, nem tenho de trilhar o caminho dos “mestres” ou repetir-lhes as asneiras com medo de deixar de ter os “requisitos científicos mínimos”, aqui sinónimo de carreira académica.
Voltando ao texto em análise, verifica-se que Nery não leu, verdadeiramente não leu, o livro que pretendeu criticar. Quando muito, leu algumas passagens, o que porém lhe não chegou para compreender o cerne do que eu escrevi.
Só assim se explica que não tenha entendido a razão por que incluí nos discos exemplares de chula, malhão, corridinho, rusga e outras danças populares (trata-se de uma comparação, e não uma identidade, com o corrido, como está perfeitamente explicado ao longo do livro, particularmente no capítulo 9, onde analiso e descrevo cada uma das faixas dos discos). Daí também que afirme que eu defendo que a origem do Fado se situa na mistura de muitos géneros musicais rurais, um absurdo que nunca me passou pela cabeça e que o desafio a situar no meu livro (só por esta afirmação se vê que Nery não percebeu nada do que eu escrevi, nem qual é, na minha opinião, a origem do Fado). Daí ainda que se surpreenda pelo facto de os discos conterem essencialmente romances tradicionais (pois claro: é aí que eu situo a génese do Fado, como lá está sobejamente explicado). Daí, por fim, que exulte com a descoberta, entre esses cerca de 40 romances, de cinco melodias de fados registados (sem falar dos que eu próprio assinalei), o que significa que não leu o capítulo intitulado “Problemas de autoria”. Também não leu o capítulo 2 do livro, onde rejeito a teoria romântica da Volksgeist, de que tão acintosamente me diz seguidor – v. também, a este respeito, a parte final do Capítulo 3, bem como os pontos seis e 16 do capítulo 13. Quando falamos do que não lemos, nem a Epistemologia nos salva.
Rui Vieira Nery remete-me para as notícias escritas de fado brasileiro antes de 1830. É surpreendente que o faça, pois contradiz-se a si próprio: em primeiro lugar, a p.50 do seu livro Para uma História do Fado, afirma que mesmo que surjam notícias portuguesas anteriores a essas, as outras provas (rectius os três referidos argumentos) são tão fortes que dificilmente os dados da questão poderão vir a ser alterados, dando assim mais importância a tais argumentos do que às ditas fontes; em segundo, porque num texto intitulado Entre mitos e enigmas, que publicou na revista do jornal Expresso, Nery explica assim a dificuldade do estudo do Fado: “(…) Como qualquer género de música tradicional, surgiu num contexto eminentemente popular e, por isso, constituiu-se, evoluiu e transmitiu-se, durante muito tempo quase exclusivamente por via oral, longe de qualquer registo escrito que nos permita hoje identificar e descrever com alguma precisão as sucessivas fases, pelo menos as mais remotas, da sua génese”. Depois disto, ainda tem o arrojo de contraditar a minha teoria com as sacrossantas notícias escritas…
Dois pontos finais: o primeiro para dizer que em nenhum lado assaquei à tese brasileira a origem congolesa do Fado, depois transportado para o Brasil, nem atribuí a Nery a procedência do Fado diretamente do lundum (a sua posição está, aliás, desenvolvidamente exposta, com extensas citações da sua obra, o que confirma mais uma vez que não leu corretamente o que eu escrevi); a segunda para esclarecer que eu não sou o “detentor legal do espólio do Almanaque” por esta razão simples: esse grupo nunca teve nenhum espólio de gravações, na justa medida em que as recolhas eram por mim preparadas com viagens prévias, com contactos e escolha dos informantes e mais tarde gravadas num aparelho Nagra IV-S de minha propriedade, apenas nessa altura sendo acompanhado por alguns elementos do referido agrupamento. Tais recolhas são, por isso, naturalmente minha propriedade material e autoral, como está devidamente definido em documento legal. De resto, estranha-se esta referência sibilina, pois na verdade as expedições de recolha que realizei na época do Almanaque foram cinco ou seis, o que é ridículo se lembrarmos as largas centenas que já efetuei ao longo de 35
anos de pesquisas de campo por todo o país.
A grandiloquência do discurso de Nery esconde, muito simplesmente, a debilidade e a ligeireza da sua tese sobre as origens do Fado e continua a não explicar estas duas coisas elementares: como se justifica a transformação do fado-dança brasileiro (mesmo que cantado, como veio agora precisar) em fado-canção de Lisboa, verdadeiro milagre indecifrado, uma espécie de little bang em caldeirada cultural; e a origem da palavra “Fado” para designar o género poético-musical que nos ocupa, coisa que não explica nem jamais conseguirá explicar.
Verifica-se, em suma, que o conteúdo do meu livro está, no texto de Nery, frequentemente deturpado, outras vezes distorcido. O leitor minimamente atento chegará com facilidade a esta evidência e apreciará, sem peias nem preconceitos, o que aí deixei escrito, fruto das minhas investigações. Esta polémica não versa, por todo o exposto, fados maiores ou menores. Reflecte simplesmente o triste fado português de ter de aturar a pequenez e a pesporrência dos que se julgam donos do Saber em Portugal.
Anuncio desde já não vir a apresentar tréplica a uma eventual réplica de Rui Vieira Nery. As limitações do espaço jornalístico não permitem dissecar argumentos ponto por ponto, matéria que terá de ficar para outro texto. Além disso, onde me sobra a vontade, falece-me a paciência e o tempo, que me obriga a tratar de coisas mais importantes.