Tinha ao lume uma m’boa, folhas de abóbora que depois de cozidas na panela, com leite de coco, haveriam de dar um bom caril, a refeição certa para partilhar com a sua neta. Mas, entretanto, o telefone tocou, a notícia foi conhecida e o lume deixou de ser brando. A alegria invadiu a casa, a panela foi esquecida e o sorriso foi ainda maior. Paulina Chiziane deixou queimar o jantar do passado dia 20 de outubro, mas ganhou o Prémio Camões 2021. Era essa a boa nova que o telefone lhe trazia. Destacava assim o júri, composto pelos brasileiros Jorge Alves de Lima e Raul Gouveia Fernandes, os portugueses Carlos Mendes de Sousa e Ana Maria Martinho, o guineense Tony Tcheka e a moçambicana Teresa Manjate, “a sua vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da sua obra”, não esquecendo “a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.” Igualmente preponderante foi o seu “trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes.”
Desde então, o telefone não tem parado de tocar. Dos amigos aos representantes de vários governos, todos querem felicitá-la. Por vezes, tenta isolar-se desse frenesi, recolhendo-se no seu mundo.
Nascida em Manjacaze, em 1955, Paulina Chiziane vive hoje em Maotas, sempre nos arredores de Maputo. Depois de vários contos publicados em jornais e revistas e da militância na FRELIMO, torna-se, em 1990, a primeira mulher moçambicana a publicar um romance, Balada de Amor ao Vento. Mas nunca quis ser pioneira, garante, apenas trilhar o seu caminho. Foi o que fez depois em Ventos do Apocalipse, O Sétimo Juramente, Niketche, o seu romance mais lido, ou O Alegre Canto da Perdiz. Mais recentemente, publicou O Canto dos Escravos, uma reflexão sobre o seu país no qual também se revela o seu constante empenhamento político e cívico.
Depois de várias tentativas, o nosso telefonema recebe finalmente a sua voz, para uma conversa cheia de emoção, memórias e histórias da sua rua.
Jornal de Letras: Como recebeu este Prémio?
Paulina Chiziane: Fiquei tonta… Completamente tonta… E agora estou furiosa com as pessoas que sabiam e que, estando perto de mim, não me disseram nada [risos]. Foi muito bonito. Não esperava, nunca fez parte dos meus planos. Mas aconteceu e foi o que se viu [risos].
Como têm sido estes dias?
Uma roda-viva. São os amigos, os vizinhos, as instituições, o governo, a imprensa… [suspiro]. Mas agora já está um pouco mais calmo.
E que imagem lhe surgiu quando soube da notícia?
Na verdade, nenhuma. Tive uma espécie de apagão. Como se a luz tivesse acesa e alguém a tivesse apagado. “E agora o que é que eu faço?”, pensei. “O que é isto? Que mundo é este?” Depois despertei para a realidade e disse: “Isto é sério demais”. Fiquei assustada.
Porquê?
Eu não sou uma pessoa séria, no sentido formal, de dizer coisas bonitas, diplomáticas. Sou uma pessoa muito liberal e gosto de caminhar descalça vestindo e comendo o que quero. Mas, de repente, a minha vida parece que está a mudar, tenho de aprender a falar correto com algumas pessoas, e isso cria alguma confusão.
Por exemplo?
Uma coisa que eu gosto muito é ir ao mercado, passear, conversar com as pessoas. E foi uma festa. Voltei para casa com os cestos cheios de prendas, uma coisa que não contava. Pensei: “Deus, o que se passa?” Tudo o que é couve, tomate, cebola ofereceram-me. Mas a alegria do meu povo foi qualquer coisa que me iluminou profundamente.
Um prémio partilhado…
Absolutamente. E até por pessoas que nunca leram nada, que só ouvem, só vêem e dizem: “É ela.” Foi muito bonito. Foi, não. É [risos].
Confessou muitas vezes que os seus livros retratam histórias que viu acontecer na sua rua, junto dos seus. Essa celebração no mercado foi talvez a mais justa…
É verdade. As minhas histórias são as histórias comuns. O mais belo é que essas histórias de gente comum fazem eco no mundo inteiro. Afinal, a Humanidade é a mesma, não importa o lugar geográfico ou a condição social. Quando se trata das condições existenciais, somos todos iguais. Isso também é uma grande prenda, um grande prémio.
Ao longo da sua vida foi pioneira em muitas áreas, incluindo as literárias: primeira moçambicana a publicar um romance, agora primeira moçambicana (e africana) a ganhar o Prémio Camões…
Eu nem me apercebi dessa dimensão. E ela teria tido importância se eu tivesse feito um plano, assim como os desportistas têm de programar o trabalho para cortar a meta. Eu só fui, só andei, só caminhei… Depois descubro que fui pioneira e penso: que coisa bela. Mas nada foi planificado e é isso que me espanta e me agrada. Também é isso que eu agradeço a todas as pessoas que confiaram no meu trabalho.
O júri destacou o papel que tem dado às mulheres nos seus romances e como retrata as suas lutas. Esse olhar também foi fruto desse caminhar?
Bem… Quando era muito jovenzinha, talvez nos 12 e 13 anos, eu ia de vez em quando ao cinema que havia lá no subúrbio onde a gente morava. Se fosse um filme de Kung Fu, de guerra ou cowboys, os rapazes ficavam na porta e diziam: “Aqui as meninas não entram.” E se por acaso conseguíssemos furar essa barreira sofríamos represálias por estarmos a ver um filme que os rapazes do bairro achavam que era só para rapazes. Para mim ficou muito claro que há uma divisão do mundo entre homens e mulheres. Um estádio de futebol, por exemplo, é um altar masculino.
Essa realidade não está a mudar?
Felizmente, sim. As mulheres vão conquistando direitos, mas ainda há muitos desses altares. O que eu quero dizer com isto? Sempre vivi com as mulheres da minha família, a minha avó e a minha a mãe. O meu pai era imigrante, trabalhava na África do Sul. O meu mundo foi o das mulheres, um mundo onde muitos lugares estavam barrados. Então, se vou escrever alguma coisa, eu vou escrever o mundo que conheço. Às vezes, os leitores pensam que quando se escreve sobre a vida das mulheres é uma questão de feminismo ou de militância. Não, estou apenas a escrever o mundo em que nasci e cresci. Mas sem dúvida que, com isso, falo dos nossos sonhos.
Mas não reconhece que os seus livros contribuíram para pôr muitas das lutas feministas na ordem do dia, como um efeito secundário das histórias que conta?
Reconheço, sim. As pessoas ficavam espantadas. É claro que há aqueles livros em que as mulheres lamentam e falam dos seus desencantos, mas há outros em que elas falam com muita autoridade e ousadia sobre o seu ser e as trapaças que os homens fazem. Houve, através dos meus livros, uma curiosidade em conhecer o feminino, gerando vários e vários debates, que ainda continuam. Fica claro que a mulher é esse ser tão completo como o homem, com direito à sexualidade, ao emprego, a um sem número de coisas que por vezes a sociedade lhe veda ou exclui. Fiz as coisas brincando e deu no que deu.
O seu romance mais famoso, Niketche, vai buscar o título a uma dança. Escrever tem sido esse baile com as palavras, o seu povo, a sua cultura?
Sem dúvida, porque a vida, com eu digo mesmo no livro, é uma grande dança. Então, se o tambor toca tens de dançar. A grande dança é uma boa metáfora para justificar que a vida é o “este momento”, que por vezes é alto, outras vezes é baixo. Temos de ser capazes de viver o momento e de celebrar a existência, porque afinal a vida também acaba.
Chegou a defender que um escritor é um bom caçador. Tem de estar sempre atento?
Eu nunca estive atenta a nada, pode crer [risos]. A tradição de escrever é nova no nosso país. O povo moçambicano de norte a sul ainda é virgem em termos de escrita. Nós, os poucos que escrevemos, somos os primeiros aventureiros. Por isso, digo sempre: a Literatura moçambicana ainda está para nascer. É bom não ter ilusões e pensar que a nossa literatura é grandiosa. Será um dia, mas agora nós estamos na pré-infância, isto é, a aprender a importância de escrever os nossos mitos e os nossos ritmos. Por que razão só acontece agora?
Que resposta dá a essa pergunta?
Porque o direito e o acesso generalizado à educação não nos foi atribuído. Foi conquistado depois de muitas lutas. Ainda são muito poucas as pessoas no meu país que escrevem, poucas também as que leem. É uma luta permanente para conseguirmos chegar a algum lugar no mundo da escrita. E nada disto diminuiu o meu gosto pela oralidade.
Há uma responsabilidade acrescida para aqueles que, nesse contexto, se dedicam à escrita?
É uma aventura, como dizia, porque nem sempre é compreendida. Nasci no campo, depois vim crescer para um subúrbio da cidade, hoje vivo noutro subúrbio da cidade, e existe um mundo chamado “moderno” ou “globalizado” que às vezes olha para esse ser humano que vive no campo ou no subúrbio como um ser menor. É um preconceito que a sociedade tem. Sair desse estereótipo para estar num lugar onde todos podem ouvir a história da mulher pobre e negra é qualquer coisa de fantástico. O meu livro que é mais lido, Niketche, é uma prova disso. Fala-se do primeiro, segundo e terceiro mundos, fala-se, no fundo, do centro do mundo. As histórias daquelas mulheres, simples e comuns, embora inventadas, têm eco nos corações humanos de todo o mundo. Isso é uma prova de que qualquer pessoa, no planeta terra, está no centro do mundo. Somos todos humanos.
Referi-me ao escritor enquanto caçador lembrando a sua intervenção nas Correntes d’Escritas, em 2009. Dizia que as balas lançadas pelo seu olhar iam cair na página onde o texto nascia. Ainda vê os livros assim?
Vejo, sim. A história do Niketche, por exemplo, é uma história que aconteceu, todo o mundo a viu. Houve um dia em que três mulheres se espancaram por causa de um homem. Foram muitas pessoas a ver e a comentar, mas fui a única a escrevê-la. A história caçou-me, mas eu também cacei a história.
Estreou-se, na década de 80, com a publicação de contos. Como recorda esse impulso literário?
O impulso, na verdade, é da infância. Estava na escola primária, na quarta classe. A professora que tínhamos, uma freira católica, mandou-nos fazer uma redação sobre a Páscoa. Rabisquei o que pude e entreguei-lhe para corrigir. Passado um tempo, chamou-me e disse: “A sua redação está completamente mal escrita em português, contudo as palavras que selecionou têm alma.” Eu era uma criança de 10 anos e fiquei a olhar para ela. Mais tarde, na missa da Páscoa a que éramos obrigados a assistir, a minha redação foi lida na igreja, depois de corrigida [risos]. Isso me encantou e intrigou. Fiquei com a dúvida: o que significa as palavras terem alma? Foi a partir desse momento que comecei a prestar atenção ao texto escrito. Embora não tivesse percebido totalmente a mensagem da professora, ela semeou em mim a curiosidade, qualquer coisa que me despertou. É como pensar numa vela. De repente, aparece um pavio que a acende e ela ilumina-se.
Ficou presa aos livros?
Sim. E pouco depois, talvez com 12 anos, descobri, também na escola, a poesia da Florbela Espanca. Num verso, de cujo poema já não me recordo, ela falava do coração das pedras a bater. Então, entre a alma das palavras e o coração das pedras, a minha curiosidade aumentou ainda mais. Li a Florbela com outro olhar, a fundo, muita literatura brasileira, que na minha infância era bem divulgada entre nós, as aventuras dos cowboys americanos, da coleção 6 balas, que se dizia ser para rapazes, e todas as histórias de amor que acabavam com um beijo da colecção Pimpinela. Todos essas obras e muitas mais me despertaram. E tenho de confessar: nas livrarias… roubei muitos livros… [risos].
É bem conhecido o seu empenhamento político na construção do seu país. A literatura também foi convocada para essa luta?
Absolutamente. Considero-me uma continuadora de grandes escritores moçambicanos, como o José Craveirinha, Noémia de Sousa ou Albino Magaia, que nos trouxeram essa voz que nos despertou para a Liberdade.
E agora, o que pensa fazer, depois deste prémio?
Sinceramente, ainda estou confusa. Ainda preciso de dormir para sonhar e acordar. A verdade é uma: a minha vida mudou de um dia para o outro. Talvez nos próximos dias seja capaz de dizer alguma com alguma coerência, porque tudo o que digo agora sobre o prémio é sob o efeito de uma grande emoção.