Não era possível, diz com um sorriso no rosto. Telefonar para a redaçao e dizer que precisava de ficar mais duas semanas na região para onde fora destacado apenas porque encontrara uma bela personagem, daquelas que enchem as páginas de um bom conto ou de um bom romance. Mas esse gosto pela vida do Outro, pela sua circunstância, pelo seu olhar, que desenvolveu enquanto jornalista, ficou impresso na sua escrita. Desde cedo se assumiu como um tradutor entre duas realidades, por vezes duas linguagens, tantas vezes de duas concepções do mundo. E a crónica, que já nos anos 70 e 80 começou a praticar, assumiu-se como a melhor forma de captar essa diversidade de figuras e pessoas com que se cruzava. Claro que eram crónicas com um pé na ficção, e ficções com uma atenção especial na atualidade, exercício a que regressou com o convite da VISÃO para um texto mensal.
Iniciou essa colaboração em março de 2019 e agora, passados dois anos, dá à estampa algumas dessas crónicas, revistas e aumentadas, no volume O Caçador de Elefantes Invisíveis. Pelo meio, o mundo virou-se de pernas para o ar com a pandemia da Covid-19, o que acentuou ainda mais os desafios que Moçambique enfrenta. É dessa realidade que nos falam as suas crónicas, mais interessadas no impacto da vida das pessoas comuns, do que a descrever os acontecimentos em si. E sobretudo mais atentas ao encontro ou ao choque entre diferentes formas de conhecimento, como no conto que dá título ao livro. De um lado, uma brigada dos serviços de saúde, do outro um caçador solitário. Estão de acordo em tudo, mas cada um reporta-se à sua própria circunstância, a do vírus que não se vê, a dos animais que aparecem e desaparecem, a do conhecimento da ciência, a da intuição dos sonhos.
O Caçador de Elefantes Invisíveis é a 11.ª recolha de contos e crónicas de Mia Couto, depois de Vozes Anoitecidas, Cada Homem é Uma Raça, Cronicando, Estórias Abensonhadas, Contos do Nascer da Terra, Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos, O Fio das Missangas, Pensatempos, Interinvenções e Pensageiro Frequente. O seu percurso literário, já distinguido com os principais prémios de língua portuguesa e muitos internacionais, inclui ainda vários romances e volumes de poesia, a base de tudo o que escreve, como garante nesta entrevista.
Jornal de Letras: Diz muitas vezes que a poesia o ajuda a encontrar novos caminhos, até para romances futuros. O conto e a crónica também têm alguma função específica na sua escrita?
Mia Couto: Só sei trabalhar pela via da poesia. Costumo até dizer que ando a traficar poesia no território da prosa, quer seja romance, quer seja conto. Às vezes até me custa dizer que sou romancista, pois na verdade é como poeta que me sinto mais à vontade. No entanto, a poesia tem uma função contraditória, que também está presente no conto. O que me aparece em verso, na forma poética, ajuda-me a ver. É como a chuva que limpa o céu. A minha função é a do tradutor que tem de descodificar aquilo tudo. Só que a poesia também complica.
Porquê?
Muito condescendentemente deixo entrar tudo. Sou ocupado e invadido por um cavalo sem rédea. Depois é preciso rearrumar essa casa que ficou cheia, perceber o que fica e o que se deita fora, ou o que se adia para outra história. É fazer uma espécie de etiquetagem das ideias que surgem de forma caótica. Nessas alturas, sinto sempre que estou a falar com uma criatura, e não com uma ideia, a quem peço licença para esperar um bocadinho, pois não é ainda nesta história que vai entrar.
Pela sua brevidade, o conto ajuda a arrumar essa casa?
Sobretudo quando sai melhor, nessas alturas em que sou visitado e parece que o conto se escreve a si próprio. Gosto muito de escrever contos justamente porque é um desafio. Ser autor, num breve período, quase um relâmpago, e ao mesmo tempo perder o pé, para que a história possa dar uma grande volta e no fim regressar à margem onde estamos. Esta sensação é um prazer enorme que o romance não dá.
Nos lançamentos que tem feito com este livro, associou os seus contos à ideia de sonho, que lhe permite escavar lembranças.
É verdade, mas com uma dimensão muito particular. Sou muito desmemoriado, desde pequeno. Aliás, ao longo da escrita do meu último romance, O Mapeador de Ausências, um resgate da minha infância em que as memórias tinham um peso enorme, percebi que a maior parte delas eram completamente inventadas. Cheguei a pedir aos meus irmãos para visitarem comigo a Beira, a cidade onde nasci, para me confrontar com as construções que ia fazendo.
Como correu essa visita?
Houve episódios muito engraçados, como eles a garantirem-me que nunca morámos na casa onde eu julgava que tínhamos morado ou outras confusões mais graves. Tinha essas lembranças como verdade. Mas mais importante revelou-se a relação que estabeleci com essas memórias, não exatamente a verdade que estava nelas, e como me ajudavam a ter um passado, uma infância.
A ténue fronteira entre a realidade e a ficção está presente até na sua vivência pessoal?
Sim, mas tenho a felicidade de viver num país que não pede contas a essa confusão, antes a compreende. Não há uma linha demarcada entre realidade e ficção. Há pouco tempo li uma notícia num jornal de Angola, onde essa fronteira também não é rígida, que se referia a um homem que entrou numa lagoa. Ele tinha pé, estava só meio submerso, mas a certa altura começou a ser puxado sem que ninguém percebesse porquê. Ao afundar-se, os colegas correram a tirá-lo da água, mas quando o ergueram estava já em estado de decomposição, que terá ocorrido em segundos. Isto era tido como verdadeiro pelo próprio jornalista. E imagino que a maior parte dos leitores também não se interrogue sobre esta notícia. Temos licença para aceitar tudo, a realidade do sonho e o sonho da realidade. A maior parte destes contos, se calhar, vão ser lidos de outra maneira em Moçambique.
Um dos contos, o do arqueólogo, chega a falar numa forma mais pura e poética da realidade. É também o que procura?
Não tenho a ideia de que os povos rurais de Moçambique são os guardiães da pureza. Essa continua a ser uma visão muito eurocêntrica, que não deixa de desrespeitar a riqueza e a complexidade que outras visões do mundo têm. O que me interessa é o diálogo entre essas duas formas de conhecimento. Nesse sentido, sou um tradutor. Não me interessa dizer qual a forma mais pura ou menos contaminada pela modernidade. Há contaminações de parte a parte, a conversa entre essas duas formas de conhecimento dá-se, prossegue, quer queiramos, quer não.
Eis o erro clássico de atribuir ao autor as palavras de uma das suas personagens…
… Pois. Obviamente, esse arqueólogo vai à procura de uma coisa que não existe.
Mas esse conto, e há outros exemplos no livro, também aborda o diálogo entre o ancestral e o moderno. É um confronto que tende a ser cada vez mais violento?
A violência talvez esteja noutro lugar: na percepção interior que as pessoas têm de que estão a perder qualquer coisa. Pode ser a mudança na estrutura familiar, no tempo que se tem para estar com os filhos ou a fragmentação do mundo que depois se reflete a um nível mais privado. É uma certa nostalgia, uma certa solidão, que vem da sensação de perda e da ideia de que a salvação virá sempre pela via da máquina e da tecnologia. Isso reacende a aproximação a outros universos, como o dos indígenas da Amazónia. Aí é que se é feliz, pensa-se. O conceito de Natureza nasceu em Inglaterra justamente porque foi onde surgiu a Revolução Industrial.
Como se uma compensasse a outra?
São indissociáveis. Surgiu a sensação de afastamento em relação ao campo, a que se passou a chamar Natureza. E hoje também somos atravessados por essa nostalgia. Talvez as pessoas se sintam mais perdidas, sem referências, até sem a possibilidade de aceder à saudade do que nunca viveram completamente. Para dizer eu estou aqui, quero ter existência, quero ser visível, que me reconheçam, parece que só existe uma saída: a violência.
Violência que também surge de equívocos?
Completamente, incluindo o do discurso identitário. O caso de Moçambique, por exemplo. Lutámos por uma coisa chamada nação, pela pátria moçambicana. Mas fará sentido continuar a falar nela? Um discurso nacional ou nacionalista talvez só possa ser uma prerrogativa da extrema direita. Na luta pela Independência era Moçambique que valia. Tudo o resto – as lutas étnicas, raciais, religiosas – foram esquecidas em nome dessa frente unitária que se fez para conquistar um país, uma bandeira. Mas o que vale um país num mundo em que o que interesse parece ser o mercado, a globalização, na qual as nações contam pouco e os governos ainda menos? Tem-se a percepção de que quem está a governar tudo isto é uma outra entidade, sem rosto, nem morada.
Mesmo a extrema direita advoga uma ideia de nação muito cristalizada…
Apenas para consumo próprio. Mas, de repente, olho para as gerações dos meus filhos e netos e pergunto-me: quanto da suas reivindicações podem ser feita pela via da subjetividade? Até que ponto se pode ser uma pessoa única? Hoje, o grande convite é para que cada pessoa se transforme numa empresa, em vez de ter história tem CV, em vez de sonhos, metas. É uma visão insidiosa, que nos rouba a possibilidade de sermos irrepetíveis e a nossa identidade.
Tornou-se um pessimista em relação ao futuro?
Não, há sempre uma saída. Estamos numa crise, talvez necessária, e é preciso levá-la até ao fundo para reencontrarmos o nosso caminho. Perdemos a grande narrativa que explicava o mundo, essa que nos dava uma luz com a ideia de haver uma humanidade global que partilhava as mesmas preocupações e sonhos. Isso está tudo estilhaçado. Mas não sou derrotado. Tenho uma relação muito má com a prevalência de um discurso apocalíptico que negue a esperança. Tudo parece um desastre, como se estivéssemos a viver uma fase terminal. Nesse discurso, quem lucra é a extrema direita com a sua ideia de um messias, de um salvador.
Quando em 2019 aceitou o convite para escrever uma crónica mensal na revista VISÃO estava longe de imaginar as voltas que o mundo daria. Tem sentido um avanço da atualidade na sua escrita?
Enquanto jornalista, nos anos 70 e 80, tinha uma grande paixão pela reportagem e pela entrevista. Mas já na altura o que me interessava, na condição concreta de Moçambique, não era estar em cima do acontecimento, mas ir em busca de histórias e de vidas. Só que não havia tempo para isso. Não era possível telefonar para a redacção e dizer que tinha de ficar onde estávamos mais duas semanas porque encontrara uma personagem fantástica. Não se procurava a figura, mas o testemunho, alguém que simplesmente corroborasse a verdade de uma versão da história. Senti que a única coisa que podia fazer como jornalista eram crónicas que já tivessem uma veia literária, o que comecei a escrever ainda antes de abandonar a profissão. Foi a melhor experiência que tive. Considero esta colaboração com a VISÃO um regresso à escrita de textos literários que tenham uma referência a qualquer coisa da atualidade. E isso dá-me um grande prazer.
O registo da crónica também lhe permite um outro olhar sobre a realidade? O conto que dá título ao conjunto, O Caçador dos Elefantes Invisíveis, parece ser um bom exemplo.
Esse é, de facto, um exemplo do desencontro de lógicas e formas de ver o mundo e de como elas se manifestaram no quadro de uma pandemia. Em muitos países, a pandemia foi sentida como um final do mundo, mas não em Moçambique, incluindo no início, quando ainda se pensava que também poderíamos vir a viver uma situação dramática, o que nunca veio a verificar-se. A acabar seria apenas ‘um’ mundo e não ‘o’ mundo. E com a escravatura ou a guerra, incluindo a civil, que fez um milhão de mortos, já houve vários fins do mundo em Moçambique. Tudo isto é trabalho pelo esquecimento. Moçambique tem essa urgência e fina habilidade de esquecer, de remeter para o nunca havido. Mas é um esquecimento mentiroso, porque ninguém esquece.
Esse conto também mostra como, no caso concreto da pandemia, alguns discursos se revelaram paradoxais, como se fosse possível ter uma mensagem una em todo o mundo.
Integrar uma comissão científica de apoio ao governo obrigou-me a viver de perto as diferentes dimensões do mundo em Moçambique. Por exemplo, quando se dizia – e a tentação era ter uma palavra de ordem simples – “fique em casa”. Mas qual casa? E se na mesma casa viveram 40 pessoas? Se calhar é melhor ficar fora de casa. Fechar a escola? Mas porquê se a generalidade das escolas não tem paredes? Consulte o seu hospital mais próximo. Mas e se ele ficar a 30 ou 40 quilómetros? O país real que temos obriga-nos a tratar diferenciadamente os alvos de intervenção. E ainda é preciso traduzir o discurso para outras línguas, que muitas vezes desconhecem certas palavras e conceitos.
Por exemplo?
Doença. Em todo o Moçambique a doença é entendida de outra maneira, como qualquer coisa que resulta de uma desarmonia com o invisível. E esse invisível, como a entidade associada aos antepassados, está viva e governa o mundo, não é só uma presença mais ou menos etérea. Daí que a superação da doença se dê pela reconquista da harmonia. Na medicina dita ocidental, uma designação que não gosto, mas vamos usá-la para simplificar, o inimigo é um estranho que tem de ser erradicado. Somos uma integridade, humanamente pura, e qualquer vírus ou bactéria que entre na nossa fortaleza tem de ser afastado. É uma visão muito estranha, quase militar, mas que é aceite – e eu também recorro a ela – pela sua eficácia e rapidez. Só agora estamos a chegar à noção generalizada de um bioma com milhões de bactérias e de vírus e à necessidade de equilibrar tudo para construir a nossa saúde, uma ideia que já estava presente em outras medicinas.
Curiosamente, fala-me muito agora da necessidade de aprender a viver com este novo vírus, o que nos remete para esse meio termo.
Exactamente. Em Moçambique, um grupo de curandeiros visitou o Ministério da Saúde com um pedido. Diziam que éramos cientistas capazes de conhecer este bicho, o que não acontecia com os seus antepassados, que nunca tiveram contacto com a doença. Por isso, pediam que, quando soubéssemos falar a língua do vírus, lhes ensinássemos, porque também queriam falar com ele. Diziam que o vírus estava igualmente com medo, inquieto, que tinha qualquer coisa para nos dizer. Isto pode parecer uma coisa ingénua, mas reflete a necessidade de encontrar o equilíbrio e a harmonia que se perdeu.
Hoje há mais vacinas do que habitantes no planeta. Como vê a distribuição de terceiras doses quando há países que ainda nem a primeira têm ministrada em grande parte da população?
É completamente imoral, além de que se sobrepõe à lógica da eficiência da resposta. Ou se resolve completamente, ou não se resolve. Quanto mais longa e intensa for a existência desta doença, permitindo o surgimento de mutações e variantes, pior. Tudo isto mostra como se politizou muito o assunto, devido a um nacionalismo que neste caso não é só de extrema direita e que serve para a gestão política e eleitoral da pandemia. No discurso, somos uma aldeia global, uma única humanidade, mas perante uma grande crise é o que se vê. A pandemia tem mostrado ainda aquilo que já começara a manifestar-se antes: a destruição sistemática dos organismos internacionais que podiam dar uma resposta global. De repente, encontramos uma Organização Mundial de Saúde despreparada, desacreditada, incapaz de gerir. E não é incapaz por ter um mau chefe ou más equipas, mas porque foi estruturalmente esvaziada. É intencional.
Moçambique tem sido assolado também pela guerra em Cabo Delgado. Foi um conflito que o surpreendeu?
O grau de violência sim, o conflito não. Trabalhei durante muitos anos nas zonas em que esta guerra surgiu e já na altura tinha a percepção de que era uma região com problemas únicos e variados. Sentia-se a emergência de gente radical, quer jovens, quer mais velhos, que chegavam da Arábia Saudita ou do Paquistão com essa mensagem. Foi um fenómeno trabalhado, semeado. Como o conflito tem várias vertente, tudo se juntou num momento propício a que essa violência se tivesse propagado como fogo numa pradaria seca.
Investimentos internacionais, questões religiosas, distância geográfica – parece de facto uma tempestade perfeita.
Começa com a ausência completa do Estado, que favoreceu o uso da zona costeira, onde este problema está a acontecer, para tráfego humano, de droga ou pedras preciosas. O rio Rovuma viabiliza a passagem fácil de quem vem dos grandes lagos em direção à África do Sul, que continua a ser uma pequena europa no corno do continente. Isso permitiu que alguns grupos fizessem grandes riquezas. E também estamos a falar de camponeses, não são só, nem sempre, de pessoas das cidades. Por isso, com um projeto como o do gás, a presença do Estado torna-se necessária à sua instalação. Começa a haver administração, polícia, estradas, uma gestão efetiva do território, o que criou uma grande indisposição em quem se sentia num paraíso. A partir de Pemba, percorrer 100 quilómetros chegava a demorar nove horas. Hoje faz-se em uma. Tudo mudou. Mas o que fez o clique foi a religião.
Porque radicalizou as pessoas?
Sim. E vivi várias situações, não é só uma impressão. Jovens que viam traições no exercício do Islão em Moçambique, que é a religião dominante no país, e a presença do Estado como obstáculo fundamental. Esse discurso era bem claro.
A guerra, nos seus contos e crónicas, é mais aludida do que descrita. Interessa-lhe mais a resistência e resiliência do cidadão comum?
A maior parte dos moçambicanos tem isso como uma espécie de especialidade, uma competência quase historicamente adquirida, nomeadamente na região de Cabo Delgado de que temos vindo a falar. O grande centro de escravatura era ali e hoje é como se não houvesse memória disso. É sempre a decisão de apagar as cicatrizes, dar um passo em frente, em nome de uma nação. O problema é que pessoas que se reconheceram como inimigos no passado se enfrentam hoje. E por vezes basta qualquer acontecimento para tudo ser manipulado de outra maneira. Interessa-me dar nome ao que é chamado só de “vítima”. A vítima é um sujeito em construção, não está à espera que a venham salvar, salva-se a si mesmo.
À pandemia e à guerra, que já convocámos nesta conversa, não podemos deixar de incluir as alterações climáticas e as cheias cada vez mais frequentes em Moçambique…
Em muitos países, a pandemia tornou as pessoas frustradas, irritadas, zangadas, mas não tanto em Moçambique, embora tenha todas as razões para isso. A ausência de esperança é um luxo a que não nos podemos dar. É preciso ser otimista, em Moçambique e em qualquer país que se confronte sistematicamente com o cenário que descreve. É preciso sobreviver contando histórias.
Em que sentido?
Estamos a viver um ano extraordinário para África ao nível dos prémios literários. O Nobel para Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, o Goncourt para Mohamed Mbougar Sarr e o Neustadt para Boubacar Boris Diop, ambos do Senegal, o Man Booker Prize para Damon Galgut, da África do Sul, o da Feira do Livro de Frankfurt para Tsitsi Dangarembga, do Zimbábue. Será só um acaso? Pode estar a fazer-se justiça agora porque cada vez mais autores africanos estão a ser traduzidos e publicados fora dos seus países. Mas faz-se também justiça ao grande berço da diversidade e da ideia de que o mundo se entende por via das histórias.
Esse é um bom contraponto ao universo de dramas de ricos que as grandes cadeias de streaming parecem querer impor ao mundo?
E também contra uma ideia de literatura que não tem de ter história, conceptual, que se alimenta da própria linguagem, com um escritor à procura de não se sabe bem do quê. Em muitos países africanos, não é preciso estar à procura, todos os dias nascem coisas, inclusive no encontro com o absurdo, com um mundo que pode ser fantástico, fantasioso ou mágico. Este é um bom momento para África se dizer por si própria, sem ser por via de outros. Há que dizer: temos histórias para contar. Vejo com grande felicidade que África se reúna dentro de si mesma, em toda a sua diversidade. Herdámos esta coisa terrível que é a África de língua inglesa, francesa ou portuguesa. O próximo passo será certamente gerar ainda mais vitalidade pela partilha interna.
Um dos últimos contos deste volume imagina o diálogo entre as estátutas de Camões e de Vasco da Gama na Ilha de Moçambique. Como resolver a representatividade do espaço público?
Somando e não subtraindo, acrescentando outras vozes que foram silenciadas. É preciso aceitar que isso tem de ser feito. E o ponto não é só se deitamos abaixo esta estátua ou não, mas o que fazemos para que essa estátua possa figurar ao lado de outra, ou de uma referência qualquer, e de como isso pode permitir às gerações futuras ter os dois lados em conflito, as suas duas vozes.
Neste contexto, como viu, enquanto moçambicano, o discurso do Presidente da República portuguesa no último 25 de Abril e o seu apelo a que se olhe para o passado todo.
Tenho dificuldade em falar sobre a realidade portuguesa, mas posso dizer que nós vivemos a mesma situação. Isso podia ser dito pelo Presidente de Moçambique. Também temos dificuldade em olhar para o nosso passado. Não me refiro à superação do colonialismo. Nesse aspeto, Moçambique saiu com honra do confronto com o regime colonial. A Frente de Libertação (Frelimo) foi sempre muito clara ao dizer que não combatia o povo português, nem os seus soldados, mas o sistema colonial. Quando acabou a guerra, Moçambique não tinha prisioneiros para entregar a Portugal. E tudo isto foi feito contrariando algumas forças internas da frente de libertação que defendiam uma guerra terrorista e rápida, ou que se assaltassem os portugueses que estavam isolados no campo. No fundo, que se impusesse a independência pelo medo. Essa luta dentro da Frelimo foi muito dura, custou vidas. Felizmente, ganhou a linha que propôs a superação pela positiva, a que dizia: estamos juntos a lutar contra o regime colonial fascista, os nossos maiores aliados são os portugueses que combatem o regime. Tudo foi feito para que um abraço no fim fosse possível. E eu vi-o a acontecer. Em certos lugares, quando o fim da guerra foi anunciado, os que combateram abraçaram-se e jogaram futebol juntos. Guerrilheiros de um lado, soldados do outro, não interessava quem ganhava.
Em Portugal, a questão tem sido colocado entre perceber se houve grande feitos ou grandes crimes.
Portugal teve um grande investimento na construção desse passado glorioso, por via do que fez nos Descobrimento. E percebo que isso não possa ser uma coisa que agora diminua os portugueses, que essa sensação de importância lhes seja roubada. Mas que se entenda também que é preciso celebrar onde houve encontros. E que isso pode ser feito agora, em vez de recuar ao passado. Fazer hoje o encontro que não foi possível naquela altura. Isso também pode ajudar-nos. Este não é um discurso para os portugueses, é para nós, africanos. Também para nós, africanos, percebermos que houve comportamentos diversos em relação à escravatura que envolveram algumas elites – pequenas elites, é preciso sublinhá-lo para não branquear a história. Não foi europeus contra os africanos só. Sou adepto de um Museu da Escravatura, e fazê-lo em Portugal seria uma boa opção. Podia ser feito em conjunto com os países do mundo lusófono e com o olhar de cada um. Seria uma boa forma de superar o passado pela positiva. E muito mais produtivo do que conferências sobre a própria língua e a lusofonia. Mas quando falo disto em Portugal há sempre o receio de trazer à tona o passado, como se fosse melhor esquecer. Mas esquecer nunca resolve.
Prefere um discurso mais virado para o futuro?
Em vez da guerra da culpa. Não vamos apontar o dedo, mas dizer que a história foi mal contada dos dois lados. Vamos resgatar essa verdade.
Referiu-se aos abraços no final da guerra e nestes contos há, na verdade, muitos entre personagens. A pandemia mostrou a importância de um abraço?
Não me tinha apercebido disso… [risos]. O abraço é mais importante que um beijo, não há dúvida. Não é só o escritor que o diz, é o biólogo também. É mais vital. Como espécie, com centenas de milhares de anos de história, é o abraço que protege o bebé, que o aquece. É a expressão de afecto mais antiga do mundo.
A Fundação Fernando Leite Couto é o projeto que mais recentemente abraçou. Qual o balanço?
Muito gratificante. É talvez das coisas mais felizes que os meus irmãos e eu fizemos. Tem-nos ajudado a reencontrar esse nosso pai que queremos honrar. A fundação é hoje um grande polo de produção e divulgação da cultura moçambicana. Iniciámos agora uma parceria com o Festival FOLIO, associada a um prémio e a uma residência literária.
Curiosamente, o Otildo Guido, vencedor da edição de 2019, decidiu também criar a sua fundação. Boas iniciativas geram boas iniciativas?
O Otildo vem de uma família pobre de Inharrime. Quando ganhou o prémio, os pais pensaram que os problemas do filho iam ficar resolvidos. Mas depois ele vem a Maputo, conhece o nosso trabalho, diz que gostou muito do projeto e que quer fazer, com o dinheiro do prémio, uma pequena fundação na sua cidade. Isto diz mais da sua rara generosidade do que da grandeza do nosso trabalho. Foi ele que nos deu um prémio.