Cotrym. Com y. Tal como a editora que fundou e que completou dez anos em 2021. Uma década e mais de uma centena de livros, maiores do que a própria escrita: objectos únicos que irrompiam ao encontro do espanto e colidiam de frente com o inesperado; a cada lançamento, uma pedrada bem viva no charco inerte e sonolento do cinzento mercado (que palavra, esta…) editorial. Nesta casa, a abysmo, não se editava livros, somente; ali se concebia seres de papel e tinta, que estavam para lá da literatura. Na verdade, João Paulo Cotrym não seria um editor, mas um arquiteto de casas para a poesia, para a escrita, para a arte. Não era nosso editor nem nós os seus autores: éramos, somos, todos juntos, uma amurada fraterna de gente amiga e abysmada, profundamente abysmada, com tudo o que se podia imaginar a partir de uma mancheia de letras, uma paleta de cores. Ali, entrava-se autor, saía-se amigo; e tantas vezes vice-versa.
Para o João, havendo uma nuvem, então, tornava-se urgente lá construir um castelo. E torná-lo habitável. Por mim, falo: de tempos a tempos, entregava-lhe poemas, assim, como os sei escrever: fatigantes letras pretas em página branca. Meses mais tarde, ele devolvia-mos em formato de livro impresso. Do livro, fazia uma morada, com formatos, cores, grafismos, ideias, portas, janelas, para a poesia habitar.
Abysmo e a Arranha-Céus, sua chancela, convergiam nesta diversidade, desde o imo mais subterrâneo, até às nuvens de que Cotrym tanto gostava. Abysmo e Arranha-céus é bem a metáfora desta generosa vontade de alargar o mundo: uma editora que se eleva a galeria; um motor de ideias acelerando em entusiasmos, amizades, conversas, tertúlias; é que os autores que JPC juntava na abysmo de imediato em amigos se convertiam: amigos genuinamente próximos.
A sua última congeminação fora Diário das Nuvens: poemas seus aliados a fotografias de João Francisco Vilhena, lançado no Castelo de S. Jorge, em novembro do ano passado. Aí, João Paulo Cotrym escreveu que a “realidade aumentada sabe a verdete”. Por isso, fintava ele a banalidade do real e do previsível, para depor “o olhar lírico” no que havia por inventar. O caminho, ali, não se fazia pela vereda da evidência, do consabido, do expectável, da realidadezinha. Pois, se, afinal, nada é o que é e se até o “mais limpo dos céus contém a promessa de nuvens”…
Contornando o óbvio, na abysmo, Cotrym e a extraordinária Isabel Amaral, companheira de vida e de quimeras, sempre convocaram um conceito de livro que ia bem além de um depósito de palavras e imagens, bem arrumadas entre capa e contracapa. Ali, sempre se promoveu um conceito de mudança, de plasticidade, de metamorfose, de permanente mutação como marca d’água da editora: o próprio logotipo da Abysmo vai mudando, camaleónico, de livro para livro, de edição para a edição, revelando-se diverso em cada obra, sob responsabilidade de um artista diferente. E os livros da única coleção da editora (sempre avessa à ideia de coleção, porque Cotrym gostava de fazer livros únicos), “Mão Dita”, têm por capa, como objecto quase descartável, uma pintura original de um artista plástico que muda a cada publicação. E às arrecuas de tudo isto, porque o mundo vai desde o abysmo até ao cimo dos arranha-céus, é da responsabilidade da editora talvez o único livro que se apresenta só enquanto miolo, sem capa, sem contracapa: Auto-Retratos, de Paulo José Miranda.
Nos castelos de areia ou de nuvens ou de páginas que João Paulo Cotrym erguia, havia sempre espaço para mais uma ala, mais uma ideia, um esquisso. Quando se deu a pandemia que, afinal, lhe levou a melhor, logo a editora se tornou revista em movimento (mais uma vez, desenho, pintura, vídeo, poesia, ensaio, fotografia, e o mais que se pudesse inventar, para resistir à estagnação). Em menos de um sopro, nasceu “Torpor: passos de voluptuosa dança na travagem brusca” (https://torpor.abysmo.pt/) e, com esta publicação online, a justificação da revista e da editora, não como máquina de cuspir livros, mas como forma de vencermos, livres, as adversidades da vida. Escrevia Cotrym, nesse editorial: “Entendendo a abysmo, o trabalho de edição, como a tentativa de retirar ao caos o que se consiga de sentido, no caso, de partir da dispersão atómica das redes para uma montar arquitetura de nexos próxima da publicação […] experimentando, afinal, este jogo entre dentro e fora, entre a ligação ao mundo e o recolhimento íntimo que só a leitura permite. Pretende apenas sacudir o torpor, para ver o que fica do que passa.”
Para os seus autores, João Paulo Cotrym não era um editor ou o fundador da bedeteca, mas um caro amigo e um galhofeiro camarada de ofício. Para os que o conheciam, seria um poeta (e aqui, à palavra, uso-a literalmente, relembrando Má Raça, A Navalha no Olho ou o recente Diário das Nuvens, por exemplo, e não enquanto a metáfora, que, enfim, também, tão bem se lhe aplica). Para tantos, miúdos e graúdos, Cotrym é o inventor dos mundos infantis de O Homem Bestial, A História Secreta do Pedro e o Lobo ou Viagem no Branco, entre tantos; livros que traduzem o olhar inquiridor do Cotrym-escritor e a certeza de que tudo podemos transformar, se não perdermos nem o humor nem a infantilidade que ele tão bem sabia cultivar.
O essencial é Querer Muito, título que deu, aliás, a um dos seus livros para a infância. Importa, realmente, muito pouco procurar respostas; urgente é descobrir “apenas portas para entrar, janelas de espreitar e degraus para alcançar pedaços do que queremos. Muito.”.
Quando a Associação para a Promoção Cultural da Criança quis comemorar, com dois livros infantis, os 500 anos da primeira edição de Utopia, de Thomas More, pediu ajuda a dois inequívocos semeadores de sonhos: João Paulo Cotrym e Inês Fonseca Santos (autora do número 1, o primeiro livro editado pela abysmo). Não havia dúvidas: em utopias, seriam ambos especialistas. Porque utopia (evidente nesse livro de Cotrym, intitulado Uma cidade em forma de assim) é uma palavra com poder demiúrgico: após ser inventada, dita, proferida, edifica o assombrado topos inexistente, que necessariamente passa a existir, ocupando um lugar inequívoco no mapa da imaginação, na cartografia do desejo.
Foi isso que João Paulo Cotrym fez na abysmo: congeminou quimeras e utopias que, por não terem lugar neste mundo, ele próprio as instituiu, ali, naquele lugar, naquela editora, naquela galeria, à Rua da Horta Seca.
Por isso, por tudo isto, os autores, os leitores, lhe agradecem a honra da “voluptuosa dança” de uma vida inteira à beyra do abysmo