Este Natal foi publicado um volume da obra de Florbela Espanca reunindo o conjunto dos contos e da poesia, com uma introdução de Amadú Dafé. De certo modo, 2019 e 2020 encerraram o labirinto crítico levantado pela hermenêutica florbeliana desde o dia sua morte, em 1930. Em 2019, José Carlos Seabra Pereira publicou o monumental As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias), em cuja análise concede um espaço digno à obra de Florbela Espanca. De certo modo, reiterando o que afirmara no prefácio às Obras Completas de Florbela Espanca, integra-a no conjunto de autores do “neorromantismo vitalista” que, em parte, conflui com a experiência poética do saudosismo, deste se singularizando pela afirmação de uma identidade feminina segundo “tendências jubilosas, sensuais e hedonistas” (pp. 220 – 222).
Porventura nascerá destes elementos antitéticos presentes na poética de Florbela (romantismo como expressão de sentimentos e emoções universais versus construção pessoal de um eu feminino sensual e erótico) o calcanhar de Aquiles da interpretação da obra da autora: uns críticos sublinhando o romantismo e dentro deste inclinando-se a ler um nacionalismo lusitano à flor da pele, incensado pelo regime do Estado Novo; outros, evidenciando mais a componente existencial vinculada à expressão de um ego feminino reprimido e “magoado” que se liberta pela escrita, porém de duvidosa moralidade segundo o modelo de mulher defendido durante o salazarismo. Seabra Pereira explicita, no entanto, ter sido a obra de Florbela escrita “à margem do Modernismo orfaico” (p. 221) e, portanto, ter-se tornado alimento de todas as interpretações exteriores à revolução poética de Orpheu (1915).
Outros autores, como, por exemplo, Nuno Júdice, em A linguagem poética de Florbela Espanca (1966, pp. 42 – 50) , evidenciando a “crise do sujeito” narrativo do princípio do século XX, valoriza a vertente simbolista de Florbela, a anulação do eu empírico e a sua projeção num Outro, demonstrando uma intertextualidade com a obra de Mário de Sá-Carneiro, invalidando, assim, a visão comum de uma poetisa ainda mergulhada no espírito romântico e decadentista do final século XIX, como foi transmitida pelo poeta José Gomes Ferreira, seu colega do curso de Direito em Lisboa.
A prosa e a poesia de Florbela teriam ficado suspensas no tempo literário e o que ela reflete do século XIX é o que deste período se prolonga no século XX, como o simbolismo e um certo decadentismo (António Nobre), e o que este século traz de novo, o saudosismo (Teixeira de Pascoaes), o vitalismo (Raul Brandão, António Patrício) e um neorromantismo popular. Os contos de Florbela estão imbuídos destas influências, que, nela, se tornam uma verdadeira singularidade estética.
De certo modo, até pela injunção de Nuno Júdice atrás citada, e como a leitura dos contos evidencia, todas as correntes literárias do seu tempo, e mesmo, indiretamente, o modernismo, se refletem na obra da escritora. Renata Junqueiro, em 2003, desenvolve a proposta de Júdice no que designa por “estética da teatralidade”. Segundo esta autora, jogos de intertextualidade evidenciam que o modernismo de Orpheu e a obra de Florbela seriam ramos de uma mesma árvore. Constituiria um pecado cultural operar não só uma separação entre ambos como ostentá-los como opostos antagónicos. Possuem entre si fortes afinidades, que Renata Junqueiro coloca sob o tema de (título do livro) Uma estética da teatralidade, isto é, “um processo literário e artístico em geral que ganha origem nas últimas décadas do século XIX, quando os artistas se ressentem mais fortemente do ostracismo a que os vinha condenando a sociedade industrial, pragmática e utilitarista. O mundo de máscaras em que o escritor então se projeta radicalmente parece protegê-lo da hostilidade do mundo real que o oprime, ao mesmo tempo que compensa a perda de identidade que lhe advém daquela mesma hostilidade. Tal estética da teatralidade constitui o agente articulador capaz de agrupar num mesmo conjunto Florbela Espanca e os modernistas portugueses, cujas obras, herdeiras do culto do artifício que o fin de siècle propôs, são afinal produtos de um mesmo contexto sociocultural” (2003: 18-19).
Neste sentido, opera uma relação entre a obra de Florbela, a ficção de Almada Negreiros, os contos de Mário de Sá-Carneiro e, finalmente, entre o Diário de Florbela e o Livro do Desassossego de Bernardo Soares. Do mesmo modo, Jacqueline Murta, em As Máscaras Simbólicas e Intertextuais em Florbela Espanca (2008), defende que a intertextualidade na sua prosa se dá não no contexto do modernismo, mas num contexto romântico e ultrarromântico (idem: 39), sobretudo no tratamento do tema da morte e das suas “imagens simbólicas” (idem: 46) numa relação próxima com a obra de Soares dos Passos.
Há um ano, em novembro de 2020, após o longo período (90 anos) em que foi considerada autora de uma obra “imoral” (ao longo do regime do Estado Novo) e construtora de uma poesia popular, para não dizer popularucha, Florbela é definitivamente aceite como autora do Cânone da Literatura Portuguesa. No livro coletivo O Cânone (António M. Feijó, João R. Figueiredo, Miguel Tamen, 2020), Anna M. Klobucka redige o respetivo verbete, considerando que a sua obra indicia a possibilidade de “vermos em Florbela a grande poet(is)a romântica que Portugal nunca teve” (pp. 249 – 250). Dois anos antes, um soneto seu, “Volúpia”, fora incluída na antologia Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos, organizada pelo crítico literário José Mário Silva (2018: 121).
Com as referências de Seabra Pereira e o artigo de Anna M. Klobucka encerra-se, assim, o período crítico e turbulento da obra de Florbela, constituído por várias polémicas literárias e, sobretudo, extraliterárias. Digamos que agora Florbela Espanca é uma autora como as outras, analisada segundo os exclusivos sinais literários da sua obra. J