NOVEMBRO DE 2011
Vejo os painéis, leio, olho de novo, custa a acreditar: centenas de são-tomenses mortos por recusarem o trabalho compelido nas obras públicas e nas roças de cacau, a violência, o terror, o massacre. Batepá. Fevereiro de 1953. Foi ontem. É hoje. Nunca deixará de ser.
3 DE FEVEREIRO DE 2008
No tempo dos blogs, na Casa de Cacela, em vez de desenhos ou fotografias, em vez de poemas, a entrada, dessa vez, é um texto em prosa antecedido de um título: “A Casa a Jusante da Ponte de Arame”. Anuncia-se um folhetim: este será o primeiro texto de muitos, publicados quase diariamente, a acabar com as desculpas de que um romance, além de disciplina, exige um tempo de que não se dispõe. O folhetim concluir-se-á no dia 3 de Janeiro de 2009, e, com outro título, será editado em Junho desse mesmo ano: O Prazer e o Tédio. Não me admirava que viessem outros: o comer e o coçar, bem diz o povo, vai do começar.
NOVEMBRO DE 2009
Chego antes da hora, espero o jornalista nos jardins da Gulbenkian para uma entrevista a propósito da publicação do romance, fumo cigarro atrás de cigarro, um nervosinho miudinho parvo, os escritores da Província não foram feitos para entrevistas e fotografias. Salvam-me as árvores e os arbustos destes jardins de Ribeiro Telles, estou ao pé de um ulmeiro, Ulmus minor, e ocorre-me então que lhes está a acontecer o mesmo que ao mundo rural, que bela metáfora do desaparecimento (nunca tinha pensado nisso, é preciso um gajo vir a Lisboa), dessa espécie de extinção vagarosa mas irreversível. O jornalista, enfim, aparece (eu envergonhado, esta coisa tão provinciana de respeitar os horários, tiram-nos logo pela pinta, é como se trouxéssemos merda nos sapatos), cumprimentamo-nos, pergunta-me que folha é essa que levo na mão esquerda, explico que é uma folha de negrilho e que uma doença, a grafiose, está a acabar com a espécie, é como o mundo rural, o escaravelho que espalha o micro-fungo nas árvores é diferente, este de matar as Aldeias é mais urbano, mais dado à alcatifa vermelha dos corredores das Assembleias, mas o resultado final é o mesmo, ambos hão-de passar ao caralho, ulmeiros e Aldeias, negrilhos e aglomerados urbanos perdidos nos montes, uns à mor do fungo, outros da retórica. Mas estava a falar da entrevista para o Público, temeroso e orgulhoso como os meus conterrâneos quando levam um boi barroso ao Prémio, o texto saiu no jornal a 17 de Dezembro desse mesmo ano, tinha por título “O mundo rural é uma árvore doente”, e nunca cheguei a agradecer ao jornalista, ao Hélder Beja, ter sido tão certeiro, ter percebido tão bem o livro, ter escolhido este título, ter-me deixado com vontade de continuar a explicar a razão de o mundo rural ser uma árvore doente. Quer dizer: continuar a escrever romances.
MARÇO DE 2012
Estou na última demão de Um Amigo para o Inverno, mas a história de Batepá não me sai da cabeça. É certo que o personagem que tinha em mente é um homem de muitas e malas-artes, de mezinhas, que há-de salvar Mariazinha e a Santinha Miraculada de Nossa Senhora das Dores, e estilhaçar espelhos só de os olhar, e partilhar os palcos com Marcel Marceau e Olev Popov. Mas o mais certo é que não fique na Vila ou na cidade do Porto, como previsto, e vá até ao Equador, às roças de cacau, às sanzalas, a um mundo de feiticeiros e almas penadas, de grandeza e indignidade, de heróis e pessoas invisíveis, sem rosto, sem identidade. Começo então um romance que há-de chamar-se As Pessoas Invisíveis, e por causa disso é que agora estou a escrever este texto, as voltas que o mundo dá.
6 DE JUNHO DE 2009
É a Inês que apresenta O Prazer e o Tédio em Cacela, o Marcelo Teixeira veio de Lisboa cheio de entusiasmo, tudo a correr tão bem e eu fui-me abaixo no discurso, a vergonha de não conter as lágrimas, o Sebou tinha anunciado a presença e afinal falhara, estava a morrer, espetou-se com o jipe no Gardunho, em estado de coma no Santo António, diga-se desde já que acabou por salvar-se, este lapouço é um gigante mas não tem juízo nenhum, talvez os gigantes sejam assim, este ainda nos há-de matar a todos do coração.
NOVEMBRO DE 2011
Entramos na Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopia, que belo acrónimo: CACAU. A Bienal, com coordenação de João Carlos Silva e curadoria de Adelaide Ginga, tem por objecto o resgate do papel histórico de São Tomé e Príncipe (como entreposto cultural em África, como espaço de partilha e conhecimento, como entreposto de comércio de escravos). Já metemos conversa com o João Carlos, já os meus companheiros de viagem lhe apresentam uma peça de muxama, já o cozinhador desaparece e regressa com ela cortada em fatias finas, um fio de azeite, gotas de lima ou limão, e o Miranda a perguntar se aqueles bocadinhos de verdura são de micocó, e se é verdade que a labiada tem mesmo efeito afrodisíaco, e tal, etc. Hei-de beber mais umas cervejas antes de os painéis sobre o Massacre me interpelarem em sobressalto, antes de deambular por entre a escultura de Geane Castro e a pintura de Kwame Sousa, regressarei depois ao balcão e às bebidas frescas, o ambiente é de festa, estamos de férias no Equador. A verdade é que a história de Batepá não me sai da cabeça, o mais certo é que não me livre dela com facilidade.
[UM MÊS DE AGOSTO, DATA INDETERMINADA]
O meu amigo Telmo deve ter lido umas páginas à socapa, incapaz de confessar o delito, depois pergunta-me, as imperiais na mesa desta tarde quente da esplanada do Arsénio, “mas por que raio não escreves escorreito, com a cronologia acertada, hoje isto e aquilo, amanhã aquilo e aqueloutro, e te pões a contar as histórias de trás para a frente e da frente para trás?” Respondo que talvez a vida seja assim, atarantada, feita de um tempo que se expande ou comprime conforme os acontecimentos, que salta de um a outro ponto da espiral, umas vezes acima, outras vezes abaixo, apagando, revelando, da frente para trás, de trás para a frente. Há anos inteiros de que não recordamos um único dia, há dias ou horas que nunca nos sairão da cabeça, por que razão há-de escrever-se escorreito se a vida é assim que corre, indisciplinada, imprevisível?
11 DE DEZEMBRO DE 2021
Acordo tarde, vou comprar o Expresso a Monte Gordo, à Barbearia Martins, nada como um jornal de referência para me fazer justiça. Pego no primeiro caderno, nada, vou-me ao suplemento (as coisas de cultura é aqui que costumam achar-se), uma página e depois outra, da Clara ao Tolentino, nada. Nem uma alusão ao Prémio, nem uma única referência ao meu nome. Como se não existisse. E eu já cheio de vaidiça, logo agora que a fama começava a saber-me tão bem.
OUTUBRO DE 2015
A sala parece irreal, talvez de a conhecer tão bem sem nunca lá ter posto os pés, dos jornais, das revistas, da televisão. E fico, fascinado, a olhar a luneta do Veloso Salgado sobre as Cortes Constituintes de 1821, eis a pintura que talvez me acompanhe durante os próximos quatro anos em Lisboa, pois o mais certo é serem mesmo quatro, a geringonça a chiar nos eixos e a aguentar-se. Mas como se compatibiliza isto tudo? Trago o romance quase acabado, a mais de dois terços, mas como é que vou de Comissão em Comissão e simultaneamente acerto as contas de Batepá, da cronologia do trabalho escravo e contratado, das mezinhas, do engenheiro alemão que descobriu o ouro e se esqueceu do volfrâmio, dos relatórios do inspector da PIDE, dos recados de Marcelo a Salazar, do padre que, nas eleições livres de 1976, votou por engano no quadradinho da foice e do martelo? Lá vou ter que continuar a arranjar desculpas sobre o tempo que se não tem quando a gente se mete a escrever textos longos em prosa.
MARÇO DE 2021
Escrevo a palavra “FIM” sabendo que nunca é assim, que uma história não acaba quando o autor a decide acabar.
7 DE DEZEMBRO DE 2021
É quase meio-dia, o vencedor do Prémio já deve saber da notícia desde o princípio da manhã, acabo de combinar o almoço, trombeiros na grelha, e é então que recebo um outro telefonema, Manuel Alegre a felicitar-me e a anunciar que sou o vencedor do Prémio LeYa 2021, e de repente tudo parece irreal, a luz que vem do outro lado da rua, dos largos vãos envidraçados do restaurante “A Camponesa”, a música de Natal da loja de fotografias, o carro do INEM a encher a manhã de sirenes, o grupo da esplanada do “Olé”. E, de súbito, é como se eu mesmo estivesse numa cascata em território reservado aos espíritos obscuros das florestas, e uma sombra espessa descesse das copas dos cabolés e das amoreiras, e um pássaro em voo fizesse mexer as folhas de um marupião, e o homem do rosto sem idade se afastasse e abrisse os braços a desaparecer num voo planado sobre as árvores.