Maria Judite de Carvalho (MJC) nasceu em Lisboa a 18 de setembro de 1921 e faleceu, na mesma cidade, a 18 de janeiro de 1998. Neste centenário do seu nascimento é importante reler os seus livros (1) tão esquecidos e, para tal, certamente muito contribui a reedição das suas Obras Completas, empreendida pela editora Minotauro, a partir de 2018.
O corpo, lugar de afetos, vulnerabilidades, emoções e desejos, encontra-se no âmago de toda a prática literária desta escritora singular que também foi jornalista e artista plástica. A sua obra, que inclui 16 títulos, três dos quais póstumos (2), apresenta uma grande coerência onde aflora um imaginário angustiante, com personagens marcadas por percursos de solidão, desencanto e renúncia, capazes de transmitir a tonalidade asfixiante do espaço salazarista. Desde Tanta Gente, Mariana (1959) até Seta Despedida (1995), o seu último livro publicado em vida, a escritora nunca deixou de dar voz ao corpo sofredor das mulheres, nomeadamente as da pequena burguesia urbana, enclausuradas em novelos de opressão e desespero.
Também as crónicas que escreveu para o Diário de Lisboa, entre 1971 e 1974, com o pseudónimo de Emília Bravo, revelam um olhar sempre atento à captura do instante e uma reflexão por vezes irónica sobre a matéria do quotidiano, salientando com frequência uma representação da mulher alienada na sua condição subalterna (Diários de Emília Bravo).
Para dizer os corpos femininos limitados por uma existência frequentemente dramática, a autora recorre à forma breve, desenhando com muita precisão uma cartografia da clausura que vai da deceção à perda e da expectativa ao cansaço, para narrar, com uma lucidez implacável, situações de crise vividas em geral por mulheres introvertidas, condenadas involuntariamente a um destino infeliz.
Estas heroínas silenciosas e desiludidas são quase sempre mulheres banais, sem história, cujo corpo se exprime sobretudo através das lágrimas e de um monólogo interior que se constrói em torno do abandono, da doença e da obsessão da morte. É certamente possível encontrar um eco destas figuras femininas na obra pictórica de MJC, nomeadamente nos retratos que Fernando Pernes define como figurações da “fragilidade-serenidade” (3) no magnífico catálogo da exposição de pintura da autora, editado pela Câmara de Aveiro, em 1999.
Numerosos estudiosos já mostraram que grande parte da obra juditiana é atravessada por uma visão pessimista do mundo e por uma consciência dolorosa do tempo que passa, mas também por uma sagacidade abissal onde desponta por vezes uma ironia amarga que, pela distanciação, permite ultrapassar momentos de profundo sofrimento. Na impossibilidade de examinarmos aqui o conjunto da sua vasta produção literária, vamos concentrar a nossa atenção no texto inaugural do seu livro de estreia, Tanta Gente, Mariana, que anuncia já as preocupações, os temas e as representações disfóricas desenvolvidas ao longo de todo o seu itinerário artístico.
Representações do corpo feminino
Nesta primeira obra, publicada em 1959, a novela epónima abre com uma voz feminina caracterizada pela solidão, propondo a trajetória de uma mulher condenada por uma doença incurável que, no espaço fechado do seu quarto, procede a uma reavaliação da sua existência frustrada, graças ao trabalho da memória que, no auge da dor, desenha pouco a pouco a desordem íntima, a contingência e a descontinuidade duma consciência atormentada. A narrativa avança em função dos movimentos introspetivos de Mariana que, envelhecida por um mal nunca nomeado, evoca o seu destino, fazendo alternar, de forma intermitente, o passado e o presente.
Encontramos assim os sentimentos matizados da menina órfã que perdeu a mãe aos três anos, a clarividência da adolescente que descobriu, aos quinze anos, pouco antes da morte do pai, o peso insustentável da solidão humana, e, por fim, a experiência de uma jovem esposa, relativamente emancipada pelo trabalho de secretária, que acaba por ser excluída da sociedade, vítima dos preconceitos burgueses, porque engravidou quando se encontrava já divorciada, provocando o escândalo e o afastamento das amigas.
Alguns episódios essenciais assinalam a súbita irrupção de uma crise na sua vida: em primeiro lugar, a traição de António, o marido, seduzido em Paris por uma escultora que convivia com o casal; em seguida, a aventura frustrada com um amigo que decide seguir a vida religiosa; depois, o acidente que a conduz ao aborto; e, finalmente, a consulta médica que lhe retira qualquer esperança, anunciando o fim da sua existência. Para além destes incidentes, a falha fundadora do modelo materno e a impossibilidade de ser mãe participam diretamente na construção neurótica da identidade de Mariana que evolui num espaço sempre atravessado pela frustração material, afetiva e sexual.
A narradora, enlutada por si mesma, explora um “tempo íntimo”, como sugeriu Maria Alzira Seixo (4), que se alarga ou se suspende em função da evocação do amor contrariado, das lágrimas ou das tentativas de suicídio reveladoras de um certo masoquismo (“Eu só pensei em suicidar-me para sofrer mais”, p.28). A imagem do corpo de Mariana começa por ser transmitida pelo espelho que, no gabinete do médico, reflete o ridículo da pena do seu chapéu. O espelho constitui assim o ponto nevrálgico que, no terceiro fragmento da novela, introduz naturalmente a narradora na autoanálise e lhe permite afirmar logo depois, em forma de constatação dolorosa: “Sou uma velha de 36 anos (…) Uma velha cheia de rugas e de cabelos brancos” (p.37).
Em seguida, é o olhar dos outros que completa o retrato, identificando no seu corpo os primeiros sinais da doença, confirmada pelo especialista, apresentado ironicamente como um tecnocrata. A desordem criada pela descoberta da doença fatal conduz a narradora a uma experiência de perda em que o seu corpo se espacializa, se expulsa, se transforma em excreção, através de uma autodevoração insuportável, como um “pedaço de pão que depois de se mastigar durante muito tempo acabasse sabendo mal.” (p.21). O corpo doente de Mariana não está completamente morto nem plenamente vivo, isto é, não se encontra nem no interior da sociedade nem completamente fora dela, definindo-se antes por um “entre dois” povoado pelas sombras do passado que enchem as suas noites de pesadelos, com rostos transfigurados e corpos prometidos à decomposição.
Para além destas visões fantasmáticas, a novela propõe um outro tipo de presença que se relaciona com a descrição da aparência gloriosa de Estrela Vale, a sedutora de António, que contrasta cruelmente com o corpo simbolicamente mutilado da narradora. Notemos que, ao longo do texto, as referências físicas são relativamente raras, na medida em que a narrativa é quase inteiramente consagrada à análise psicológica de Mariana, ao seu balanço existencial e ao sentimento de perda que pode ganhar a forma de uma confusão identitária: “Troquei tudo, baralhei todas as coisas a ponto de não me achar a mim própria.” (p.34). Através desta observação, a narradora é projetada para a junção do espaço e do tempo, do visível e do invisível, do dentro e do fora, para esse ponto em que o instante rasga a temporalidade revivida, de forma a desenhar uma travessia da dor de estar viva.
Uma dicção da perda
Na obra de MJC, o corpo das personagens e/ou das narradoras não surge apenas representado no tecido textual, mas respira também no âmago da escrita que o envolve com a sua própria carne, ocupando simultaneamente a posição de objeto e de sujeito. A novela que nos ocupa põe em evidência uma imensa falha, exprime decerto um fracasso, mas revela-se sobretudo como uma escrita salvadora, de luta contra o tempo, forma de terapia que ajuda Mariana a aceitar paulatinamente a ideia da morte. Esta começa por ser anunciada pelo motivo das fotografias evocadas pela protagonista (o retrato dos pais, a imagem da finada irmã de D. Glória, e por fim a sua própria fotografia, feita por António em Gouveia, antes da separação do casal).
Através do longo monólogo dirigido a si mesma, Mariana encena um processo de antecipação da morte, graças a uma escrita silenciosa, que pode ser entendida como uma modalidade defensiva capaz de operar a negação do fim e de acompanhar as metamorfoses do corpo doente. Descobrimos assim uma palavra-testamento, uma escrita-sudário que aponta para um intervalo rodeado de abismo.
Para Mariana, a palavra é a única fuga possível perante a angústia ontológica que a avassala. Contudo, ao dizer-se de maneira fragmentária, a voz narrativa elabora um todo ordenado que nunca resvala para a histeria. Graças a uma transferência de corporalidades, identificamos progressivamente a passagem do corpo visível e palpável para a metáfora de um corpo reincarnado no monólogo interior cuja materialidade se confunde com o corpo destinado à morte, semelhante a um segundo corpo que confere uma certa consistência à personagem, mesmo se participa ativamente na sua dissolução.
A presença de espaços brancos entre cada fragmento da novela (contamos mais de 40) cria efeitos de espelhamento na página, de tal forma que o branco não desenha apenas um vazio, mas capta e amplifica uma ressonância, participando amplamente na construção de um mosaico mental que acolhe pedaços sucessivos ou simultâneos de uma consciência marcada pela necessidade de converter o sofrimento em ato de lucidez. Para Mariana, a escrita constitui claramente um refúgio essencial. O seu quarto estragado pelo bolor do tempo transfigura-se numa espécie de meio uterino onde a doente tenta reconquistar o seu corpo, tanto no sentido próprio como no figurado. E podemos perguntar se a pena do seu chapéu, simbolizando a impossibilidade do voo, não corresponderá também à pena da escrita que lhe restitui provisoriamente uma certa liberdade.
O adeus ao corpo passa, nesta novela, pela encenação de uma voz fragmentada que cede pouco a pouco ao silêncio, na tentativa de compreender o objeto da violência instaurada por uma patologia, que aponta igualmente para uma cultura que oprime, permitindo-nos considerar a doença na sua relação com as esferas do político e do social. A dicção do corpo doente de Mariana revela um disfuncionamento fundamental, que ilustra o destino de muitas mulheres na sociedade salazarista, sem deixar de propor uma rede de interrogações em torno dos conceitos de diferença, de alteridade e de impotência social que representam bem a condição feminina ao longo dos séculos.
A escritora não teve forçosamente a intenção de denunciar o estatuto inferior das mulheres na sociedade falocêntrica, mas o texto deixa transparecer o seu desejo de revelar, no final dos anos 50, uma forma específica da experiência das mulheres submetidas à construção social dos papéis femininos e masculinos, definidos por múltiplas regras e proibições. Como bem mostrou Judith Butler, na esteira de Michel Foucault, o poder não se inscreve unicamente entre os indivíduos, mas exerce-se também no âmbito de um pensamento binário sobre o género (5). As mulheres, reduzidas ao seu papel de donas de casa, são de facto “corpos dóceis” (Foucault) que reproduzem gestos, preconceitos, estereótipos, recusando a verdadeira vida, tal como observa Simone de Beauvoir (6), cuja visão não se encontra muito longe do que pensa Mariana, ao afirmar ironicamente:
“Detesto as boas donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer dos modos são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas às suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras a fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada.” (p.45)
Se a escrita se confunde com uma excrição, como afirma Jean-Luc Nancy (7), é porque o Ser da linguagem se oferece e se desdobra num movimento de reflexividade de um sujeito que funciona também como espelho de uma época. Nesta perspetiva, podemos considerar que Mariana, através do seu corpo excrito, desenha um traço, tornando-se paisagem visível e movediça de uma sociedade em que as normas regularizadoras funcionam, tal como diria Judith Butler, “de maneira performativa para constituir a materialidade dos corpos” (8). Por conseguinte, o corpo sofredor das mulheres, tal como nos é dado a ler nesta novela, poderá certamente ser entendido como o efeito de uma dinâmica do poder que determina as existências femininas. Ora, sabemos desde Simone de Beauvoir que tanto o casamento como a maternidade mutilam a mulher, condenando-a à repetição e à rotina.
Maria Judite de Carvalho, que sem dúvida leu Le Deuxième Sexe, parece ter disso perfeitamente consciência quando escreve Tanta Gente, Mariana, dez anos depois da publicação do ensaio da escritora francesa. Se a sua novela não pretende atingir uma dimensão eminentemente política, constitui, no entanto, uma ilustração feroz da condição feminina nos anos 50 em Portugal, afirmando-se também como uma atividade lúcida de criação e de transformação do mundo.
(1) Uma parte deste estudo foi apresentada num colóquio organizado em Paris sobre a escritora; (2) Trata-se de Diários de Emília Bravo, do volume de poesia A Flor que havia na água parada e da peça de teatro Havemos de rir!; (3) “MJC – rostos de solidão. O discurso do silêncio”, in Pedro Calheiros (ed.), O Imaginário de MJC, p.13.; (4) Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português Contemporâneo, INCM, p. 200; (5) Judith Butler, Trouble dans le genre. Pour un féminisme de la subversion, Paris, La Découverte; (6) Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe, II, Paris, Gallimard, p.63; (7) Jean-Luc Nancy, Corpus, Paris, Métailié; (8) Judith Butler, Ces corps qui comptent. De la matérialité et des limites discursives du ‘sexe’, Paris, Éditions Amsterdam, p.16.