Há muito que deixou de ler os comentários que os leitores do P3 do jornal Público fazem aos contos que para lá escreve semanalmente. Algumas histórias dão origem a reações negativas, como foi o caso de uma sobre uma mulher que vivia livremente (e abundantemente) a sua sexualidade. Não lê os comentários, mas também não impõe limites à sua criatividade. Cláudia Lucas Chéu gosta de escrever sobre tudo, incluindo as zonas mais escuras. A sua prosa, tantas vezes torrencial, sempre na fronteira entre a realidade e a ficção, o biográfico e o imaginado, apresenta-se sem tabus. E em A Mulher Sapiens, o seu livro mais recente, uma edição da Companhia das Ilhas, tenta mapear o lugar da condição feminina na sociedade contemporânea, sublinhando as suas “evolução” e “mutabilidade”, que obedecem cada vez menos a “convenções sociais”.
Nascida em Lisboa, em 1978, é escritora, dramaturga e guionista, além de atriz do palco, da televisão e do grande ecrã. Beber pela Garrafa, Confissão e A Mulher Sapiens são as suas obras mais recentes.
JL: Há títulos que anunciam um programa literário. É o caso de A Mulher Sapiens?
Cláudia Lucas Chéu: Sim, há nestes contos uma vontade de escrever sobre o lugar da mulher na sociedade contemporânea. Quando iniciei a colaboração com o Público não tinha uma ideia clara do que me interessava. Começar a escrever sobre o próprio sujeito enunciador (eu) acabou por surgir naturalmente, o que implicou tratar inúmeros assuntos relacionados com condição feminina nos nossos dias.
O que lhe proporcionou a literatura nessa abordagem?
Uma maior liberdade no tratamento dos temas. Mas falar de mulheres é falar também de homens, no fundo, de seres humanos. Durante muito tempo a literatura inferiorizou esta perspetiva, apelidando-a de escrita no feminino, ou impôs a dos homens.
É preciso equilibrar as visões do mundo?
Sobretudo as que se expressam na primeira pessoa. Claro que os homens podem e devem escrever num sujeito feminino, mas é diferente quando esse relato é fruto da própria experiência das mulheres. Felizmente, a literatura contemporânea está cada vez mais cheia de bons exemplos de mulheres escritoras.
O relato na primeira pessoa é um dos traços dominantes destes contos. Como gere a realidade e a sua transfiguração?
É nesse conflito que surge o texto, entre algumas coisas que são declaradamente autobiográficas e outras que formam uma narrativa paralela que não me pertence, nem conheço, e que crio no momento da escrita.
Assume-o como um jogo? Em alguns casos duvidamos tanto do que supomos real, quanto do que intuímos imaginado…
Gosto desse lado lúdico e de deixar ao leitor o trabalho de descodificar o que pertence a cada campo. É também um teste à verosimilhança, perceber se tem a mesma qualidade literária o que ficciono e o que partilho de mim.
Os contos foram publicados a um ritmo semanal. Esse ritmo foi desafiante?
Como fiz durante alguns anos escrita de argumento para televisão, já estou habituada a um ritmo exigente. Gosto de ter prazos e da pressão da entrega. Mas escrever contos semanalmente tem sido uma experiência diferente… De início tinha um arquivo de ideias e de textos, agora ando na corda bamba.
No diálogo que tem com a sociedade atual, o que mais desperta a sua atenção para um conto?
Gosto de iluminar as zonas mais escuras e escondidas, o que não se quer de dizer e sobre o qual não se fala muito. Não há material que não possa ser trabalhado. E interessa-me justamente aquele que as pessoas por norma põem de lado.