“E exijo que aquele que ainda se negue, por exemplo, a ver um cavalo galopante num tomate deva ser considerado como um cretino”
André Breton
Com o longo confinamento devido à pandemia, fui observar os livros nas prateleiras mais elevadas da estante da casa. Encontrei uma preciosidade esquecida – “cuidado com a escada para não caíres” – a edição fac-similada (da Secretaria da Justiça e da Cidadania do Governo do Paraná, 2001) dos primeiros 21 números da revista Joaquim (em homenagem a todos os Joaquins do Brasil). Editados mensalmente, em Curitiba, entre abril de 1946 e dezembro de 1948.
Desci as escadas são e salvo.
Dirigida por Dalton Trevisan (n.1925), a publicação teve como colaboradores Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti, José Lins do Rego, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer, Otto Maria Carpeaux, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Oswald de Andrade entre muitos outros escritores e artistas plásticos que constituíam a nata da criação moderna do país. E traduções de textos de Kafka, James Joyce, André Gide, Raina Maria Rilke, Virgínia Woolf, Lorca, Eugene O´Neill, Sartre, Picasso e outros representantes de uma postura intelectual internacional afinada com ideários de vanguarda. E também ataques frontais a conhecidos intelectuais brasileiros como Monteiro Lobato e Gustavo Corção.
O escritor paranaense, que assina D. Trevis, conhecido popularmente como Vampiro de Curitiba (título de um dos seus livros), trabalhou na sua juventude na fábrica de louças da sua família, formou-se em Direito e exerceu a advocacia durante sete anos. Ele inspirou-se na observação de habitantes da sua cidade para escrever uma longa obra, A polaquinha, A trombeta do anjo vingador, Guerra conjugal (que deu origem a premiado filme do realizador Joaquim Pedro de Andrade), Cemitério de elefantes, Lincha tarado, Pico na veia, Novelas nada exemplares e Morte na praça, entre outras. A sua alcunha deve-se à atmosfera de mistério criada à sua volta, a ser extremamente reservado e avesso a entrevistas, a enviar representantes para receber os seus prémios literários, entre outras particularidades de comportamento.
Ao longo da sua vida construiu uma das obras mais coerentes e radicais da cultura brasileira e a revista que criou tinha em vista, segundo palavras suas, educar o gosto dos leitores. Criou personagens e situações de significado universal numa linguagem concisa e popular com a valorização de incidentes do cotidiano, enfim as suas personagens vivem as frustrações do cotidiano apequenado da baixa classe média da cidade: a guerra conjugal, o adultério, a velhice, as taras… com sucinta oralidade urbana. As personagens, sem crédito moral por parte da comunidade, mas moralmente livres, vivem no seu próprio balanço psíquico e são apresentadas por si próprias. Os leitores vão conhecendo-as observando a sua conceção do mundo, suas fraquezas, sofrimentos, alegrias e os mistérios da vida de cada uma, como no conto A casa das quatro meninas:
“A minha é a casa das quatro meninas. Sem contar a velha, a neta e a cachorrinha. Pendurados em cada canto, já viu, tanto sutiã, quanta calcinha? Todos os modelos, cores e tamanhos? A primeira filha nem casou, já separada. (Tenho) a neta no meu colo. A segunda é dançarina de boate. De boate, cara. A terceira botou a mochila nas costas e saiu de viagem. Pedindo carona, dormindo em albergue, lavando prato. Está (de passagem) em Istambul…(e) a caçula decidiu se juntar com o namorado.”
Enfim, vidas frustradas dessa humanidade a quem o destino enganou desprendem uma luz suave de poesia que as engrandece e impõem à simpatia do leitor.
Em um dos exemplares da Joaquim li críticas a Salazar, ao poeta António Botto (“António Botto, segundo o doutor António Botto, é o maior poeta vivo de Portugal e se ruim poeta é o seu maior poeta, pior para Portugal”), destaques a ilustrações de Vespeira e um artigo intitulado “O anarcossindicalista” sobre um sapateiro português, Timóteo Barbalhão, que tomou “parte na derrubada de Dom Manuel”.
Entre muitas distinções literárias, Dalton Trevisan foi galardoado com o Prémio Portugal Telecom de Literatura, em 2003, e os Prémios Camões e Machado da Assis (da Academia Brasileira de Letras) no mesmo ano de 2012.
Adiante.
“(O pai das quatro meninas) agradece aos céus. Podia sempre ser pior. De todas, já viu, a única que nunca me mordeu? Foi a cachorrinha. Com tanta mulher, olha eu sozinho em casa. A velha e a cunhada em Miami fazendo compra. A primeira filha viaja com o marido em busca de reconciliação. A dançarina? Uma semana de show em São Paulo. A terceira pede carona lá na Grécia…Olha eu sozinho. Alguém, não é? tem de cuidar da neta. Ela dorme. A casa inteirinha só pra mim. Muito em sossego no borralho. Então porque sinto falta: ‘Ai, pai, essa não, pai’. O festival de sutiãs pendurados aqui e ali? As mil e uma calcinhas de todas as cores?”
Dalton Trevisan não pretende fazer da sua obra um veículo de intenções políticas como era usual na época de criação da revista Joaquim. Inspirou-o o profundo conhecimento do homem e as experiências de sofrimentos e alegrias que acompanham esta vida fugaz de todos nós.
Alguns dias depois, voltei a subir as escadas para guardar as revistas no alto da estante: “cuidado com a escada para não caíres” …e o confinamento continua, é melhor não pensar de mais no dia de amanhã porque o dia de hoje já é difícil o quanto baste. E ri-me porque pensei que o “Vampiro de Curitiba” gostaria desta frase.
“Estás-te a rir de quê?“ – perguntou-me a minha mulher, enquanto eu arrumava a escada. J
Construiu uma das obras mais coerentes e radicais da cultura brasileira e a revista que criou, Joaquim, tinha em vista educar o gosto dos leitores. Criou personagens e situações de significado universal numa linguagem concisa e popular