No ano em que celebra duas décadas de percurso literário, Ondjaki publica um romance intitulado O Livro do Deslembramento, que é, na verdade, um exercício de puro encantamento. O autor regressa ao tema que tem vindo a “contar” desde o primeiro texto: a cidade de Luanda e as suas gentes. O que este livro nos propõe é revisitar a Luanda de finais dos anos 80, conduzidos pela voz do narrador, agora adulto. Empreendemos, com Ndalu, uma viagem ao seu passado, ao tempo mágico da infância, num texto que se constrói num incessante diálogo entre as memórias e a imaginação. O cunho marcadamente autobiográfico da narrativa surpreende e desconcerta o leitor, levando-o a cruzar-se, ao virar das páginas, com personalidades empíricas do mundo da literatura angolana, os escritores Costa Andrade e Abranches, num ambiente familiar e intimista, onde não falta o próprio autor do romance, também ele convocado para personagem (narrador-protagonista) da ficção.
O entrecho está marcado pelo que podemos apelidar uma sintaxe da lembrança (retomando, em sentido inverso, a expressão ‘sintaxe do esquecimento’ fixada por Homi Bhabha). Neste caso, estamos perante a necessidade de lembrar que se inscreve de variadas formas na obra, surgindo desde logo enunciada no título, que confere ao livro a faculdade de impedir o deslembramento, na medida em que fixa nas suas páginas as memórias do narrador-protagonista. Está ainda presente na epígrafe colocada em abertura do primeiro capítulo, que tem a particularidade de enunciar os três fios condutores da narrativa: viver, contar e rir: “a avó Nhé é que tinha razão: contar./ o mais importante era contar./ E o tio Victor também: viver. o importante era viver,/ e rir: que era viver de novo”. Ao longo dos capítulos, acompanhamos o exercício de resgate das memórias da infância, que não procura o respeito de uma ordem cronológica, mas ao invés se deixa conduzir pela afetividade e a empatia.
Se a recordação do tempo de antigamente traz consigo a incerteza acerca das experiências vividas, que leva o narrador a confidenciar que “não sei, às vezes eu não sei lembrar” porque não se recorda, noutras ocasiões as dificuldades nascem do facto de não encontrar os termos certos para partilhar as sensações experienciadas, porque demasiado íntimas: “Lembrança é assim uma coisa que já aconteceu e que volta, volta na nossa cabeça, com força, fica lá, traz mesmo sons e até cheiros, as minhas lembranças sempre trazem cheiros que eu consigo sentir com muito boa nitidez mas não sei explicar a ninguém”. É esta poética do pensamento que pode explicar o facto de estarmos perante um romance marcado pela fragmentação diegética, em que cada capítulo corresponde a uma situação vivida e por isso lembrada e contada, como o convívio com amigos na casa de Ndalu, a entrada no novo mundo da escola, a aprendizagem do valor da amizade e da lealdade, as tradições natalícias, os efeitos da guerra em Luanda, ou o amor sábio e cúmplice da tia Rosa.
O Livro do Deslembramento traz-nos o retrato de uma sociedade marcada por uma ideologia dominante, que se faz textualmente presente na forma tão característica de tratamento “camarada” que acompanha todas a nomeações (desde a camarada professora, até ao camarada polícia, passando pelo camarada gatuno), e percorrida pelo fantasma da guerra, os mujimbos da política e as telenovelas brasileiras. É no capítulo onde Ndalu narra o serão em que família e amigos se instalaram diante da televisão para assistir à telenovela brasileira que Ondjaki, contador de estórias, mostra exímia mestria. Nada deixava adivinhar uma alteração na sessão televisiva diária, naquele serão que se apresentava como tantos outros. Se todos já antecipavam as emoções da história entrecortadas por constantes falhas de eletricidade, ninguém estava preparado para nessas circunstâncias a televisão continuar a funcionar e muito menos ouvir uma das personagens da telenovela proferir uma sentença categórica: “Mais fortes são os poderes de deus”. Por entre o relato do espanto, assombramento e receio dos presentes, intercala-se a história de Roque Santeiro, criando um texto repleto de humor, vivacidade e ternura.
Esta viagem ao passado revisita não apenas as memórias de infância do narrador-protagonista, mas também a história e as estórias de uma cidade e de um país numa época particularmente importante, balizada pelas primeiras eleições do país independente e o retomar da guerra civil, num relato intimista, que envolve os leitores nas lembranças desse tempo de antigamente.
Ondjaki: viver para lembrar, lembrar para contar e rir
Agripina Carriço Vieira escreve sobre O Livro do Deslembramento, o último romance de Ondjaki
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