Na família de Hirónimo Viktor todos atiram a matar. Mas a presa não é comum. Fervorosos nacionalistas, orientados pelo mais vil fundamentalismo religioso, caçam imigrantes e refugiados que passam pelo buraco que abriam na rede que isola as fronteiras do país que juraram proteger. O que parece libertador transforma-se em morte certa. E desse jogo de ilusões e crueldade se faz Tropel, o novo romance de Manuel Jorge Marmelo (Porto Editora, 152 pp, 14,40 euros). Uma obra em que literatura e atualidade se cruzam para desassossegar o leitor.
Nascido em 1971, Manuel Jorge Marmelo é jornalista e autor de duas dezenas de títulos, que vão do romance ao conto, da crónica ao teatro. Em 2004 recebeu o Prémio APE de Conto Camilo Castelo Branco, com O Silêncio de um homem só, e anos depois, em 2011, o Prémio Literário Correntes d’Escritas pelo romance Uma Mentira Mil Vezes Repetida. Sabe que, com este novo livro, pode vir a ser mal interpretado, mas é da natureza da literatura, e também da sua, correr riscos.
Jornal de Letras: Com este romance procura, de uma forma muito direta, incomodar e agitar o leitor?
Manuel Jorge Marmelo: Foi esse o objetivo. Saramago costumava dizer que o poder nos quer com medo ou meios tontos, sem consciência do que está a acontecer à nossa volta. Nesse sentido, este é um livro de desassossego que procura sacudir as pessoas e alertá-las para a realidade que está à nossa volta.
Foi uma forma de endossar ao leitor um incómodo que também é seu?
É uma tentativa. O livro começa com aquele poema de Martin Niemöller: “Quando me vieram buscar já não havia ninguém que pudesse protestar.” Na sequência de outros livros meus, este é mais um meio para não vir a ser acusado de não ter dito nada quando vi o que estava a acontecer.
Essa dimensão mais política, de intervenção no seu tempo, tem vindo a impor-se de livro para livro. Um mundo cada vez mais estranho exige gritos de alerta mais vigorosos?
Talvez sim. Não há como negar que o mundo está cada vez mais estranho. Mas a literatura também é um processo de tentativa e erro. Esta é outra aproximação aos assuntos que me preocupam.
Hoje vemos grupos armados, como nas recentes eleições americanas, a exibirem-se orgulhosamente, afrontando as instituições democráticas. A realidade tem superado a ficção?
A literatura é um pouco como jogar póquer. Estamos sempre a fazer bluff. Tentamos que os outros achem que estamos a mentir quando, na verdade, estamos a falar verdade. Talvez este romance faça o mesmo. É aparentemente uma história ficcional e exagerada que, no entanto, partilha com os leitores uma série de problema muito reais.
O tema das migrações tem surgido em outros romances recentes. Mas aqui o ponto de vista é de quem se sente invadido. O que o levou a escolher essa perspetiva?
A questão das migrações é a parte visível do iceberg literário do livro. Ou seja, a história que nele se conta é de imigrantes, mas submerso está o medo, a reação das pessoas ao que não compreendem e ao que as assusta. Acredito que essa segunda dimensão permitirá ao romance sobreviver aos seus traços de atualidade, podendo continuar a ser lido daqui a 20, 30 ou 50 anos com a mesma pertinência.
O medo do desconhecido é intemporal?
Exatamente. Está presente desde o início da Humanidade. Não digo que neste momento vivemos tempos de um medo maior ou mais intenso, mas está novamente a ser aproveitado por alguns líderes políticos que, através dele, querem fazer vingar as suas agendas.
Neste livro, acompanhamos três gerações de uma família que se dedica a atirar a matar. Não a animais, mas imigrantes. Como foi colocar-se na pele do verdugo?
O grande fascínio da atividade de um escritor é precisamente o exercício e a possibilidade de sermos outros, de nos pormos no seu lugar, usar os seus sapatos. E se o processo tem uma certa dimensão dramática, é ao mesmo tempo muito compensador. Neste caso, por ter conseguido encontrar essa crueldade dentro de mim, confirmando a ideia de que temos o melhor e o pior dentro de nós e só pela educação e pelo convívio social modelamos os nossos horrores.
O livro tem uma geografia muito própria e revela um enorme conhecimento da arte da caça…
… Que não tinha, pois nunca cacei, nem fazia ideia do que implicava. Tive de fazer alguma investigação. O país, pelo seu lado, é inventado. Alguns nomes podem ser encontrados num mapa, mas não correspondem à sua localização ou forma. Procurei um território que desse alguma verosimilhança, porque sabia que a história corre o risco de ser totalmente improvável. A opção pela Europa central tem a ver com isso, pois acompanhamos pelas notícias a reação extremamente negativa que aí políticos e muitos cidadão anónimos têm manifestado contra os imigrantes. Apesar destes territórios novos e desconhecidos, não deixei neste livro de escrever sobre uma coisa que conheço razoavelmente: a condição humana.
Parece haver, no entanto, uma certa esperança na ideia de não estarmos condenados a cometer os erros do passado.
Sim, quis que o livro terminasse com essa centelha, com a possibilidade de não obedecermos a determinismos, quer impostos pela biologia, quer pela educação. Essa esperança final abre uma janela no romance a partir da qual se pode respirar algum ar puro. Na primeira versão o livro acabava de uma forma absolutamente seca, horrível. Não faz mal nenhum dar um instante de sossego ao leitor.
Não teme ser mal lido nestes tempos de politicamente correto e de interpretações demagógicas?
O politicamente correto é qualquer coisa que me enoja particularmente, portanto não lhe faço a mais pequena concessão. Mas reconheço que uma leitura apressada ou que não chegue ao final do livro, até pela dificuldade que sei que encerra, pode criar imagens erradas.
Ainda assim, a literatura deve correr esses riscos?
Não a entendo de outro modo. A literatura tem sempre de encerrar algum tipo de risco, não pode ser um modo de acomodação. De outro modo estaria sempre a escrever o mesmo livro, aquele que me tornou notado e com o qual conquistei alguns leitores.
Regressa passados quatro anos numa nova editora. Traz muitos projetos?
Alguns, mas nenhum pronto a editar. Com a bolsa de criação literária que me atribuíram agora vou conseguir dedicar-me exclusivamente a um projeto que me ocupa há quase uma década e que já teve muitas versões. Um romance em torno do tema da eutanásia.
Outro tema muito atual.
Tem a ver com a liberdade que somos capazes de conceder ao outro para escolher o seu fim. Enquanto defensor da eutanásia não me arrogo o direito de impor essa opção a ninguém, do mesmo modo que quem é contra não deve impor as suas escolhas.
É o cidadão a falar com o escritor?
É sobretudo o cidadão a procurar ser um homem livre. Essa é a minha grande motivação para fazer literatura. No fundo, tentar que esta pessoa, eu, com os seus direitos e deveres, seja capaz de superar os constrangimentos que lhe são impostos e poder viver a sua liberdade.
Entrevista publicada no JL 1308, de 18 de novembro de 2020.