Dirá muitas vezes, ao longo desta entrevista, em à partes irónicos, que “já nos estamos a afastar do livro”. Mas concluirá sempre, poucos segundos depois, que “se calhar não, isto também lá está”. Quando, o poema longo que há tanto tempo perseguia, tem a ambição de conter a vida toda, de colocar todas as perguntas, mesmo sabendo que alguns não podem ter resposta. É uma viagem pelo tempo, o seu, pessoal, e o que lhe coube viver, coletivo. Começa nas imagens da infância, nesse tricotar da tia que o acompanhou no exílio e que se transformou, ao correr dos anos, no tricotar do poema, feito de ritmos e toadas, versos e rimas, história e experiência. Talvez seja efetivamente uma síntese do seu percurso, rico e variado. Manuel Alegre vê-o apenas como uma peregrinação interior, uma viagem sem rumo que tanto recorda o que se viveu, quanto o que se poderia ter vivido. Interrogação do próprio fazer poético, Quando (edição D. Quixote) cruza também novas fronteiras na sua poesia, num território ainda por explorar. Um livro surpreendente, pois, nos 84 anos do poeta que desde Praça da Canção e O Canto e as Armas é o mais lido – e ‘”cantado” – da literatura portuguesa contemporânea, doutor honoris causa pela Univ. de Lisboa ou com uma cátedra com o seu nome na histórica Univ. de Pádua, também ficcionista com livros de assinalável sucesso, de Alma a Cão como nós.
JL: Tem assinado os últimos livros com o seu nome completo e neste chega a afirmar, em dois versos, que: “Não te esqueças que morreste em todos os poemas/ e nunca assinaste o teu nome todo.” Tem vindo a dar-se de corpo inteiro à poesia?
Manuel Alegre: Nunca se sabe se estamos ou não inteiros num poema. Talvez, aqui, sim. Tenho um problema com o meu nome. Alegre é da minha mãe, e o meu pai, Melo Duarte, embora não dizendo nada, talvez sentisse alguma tristeza. Por isso, não na capa, no fim do poema, tenho terminado os livros mais recentes com o nome completo. Isso tem muitos sentidos, alguns que nem sei explicar.
Como se assim recuperasse também a vida toda?
Sim, o que ficou de nós pelo caminho, o que tentamos agora recuperar. Evoco nesse sentido o olho de Camões que ficou em Ceuta, o braço que Cervantes deixou em Lepanto, a perna que Rimbaud amputou em Marselha. Somos muitas vidas. Somos muitas vezes heterónimos de nós próprios, sem biografias alternativas, como tinha Pessoa, mas com uma pluralidade enorme.
Teve muitas frentes de batalha…
O que me oferece uma grande dificuldade. Agora que estou a escrever as minhas memórias tenho a sensação de entrar no campo da ficção.
Também podemos ver em Quando a síntese da sua vida?
Talvez esteja lá tudo, sim, comprimido, e a poesia tem essa virtude, não da síntese, que é sempre impossível, mas de nos levar diretamente ao essencial da vida. Desde muito novo que tentava escrever um poema longo que fizesse as perguntas todas. Mas não tinha então a sabedoria, nem as vivências, nem as leituras, nem o domínio da palavra e da técnica poética. Surgiu agora, aparentemente fora de horas.
O que o atraía no poema longo?
A ideia de ciclo: da vida, da terra, das estações, das marés, também do ritmo poético, do ser e da sua aprendizagem. Alguns dos meus livros já têm essa marca, de ciclo de poemas, como A Senhora das Tempestades, por exemplo. Tenho vários esboços em cadernos que se perderam, sempre em busca desse poema longo, não um que fosse feito de vários poemas. Surgiu agora quando estava há algum tempo sem escrever poesia.
Andava mergulhado nessa prosa memorialística.
Que continua a ocupar-me. Mas depois veio o confinamento. Não houve uma causa direta, mas esse tempo de isolamento abriu a possibilidade de as pessoas se virarem mais para si. No meu caso, levou-me a uma viagem por dentro da vida, a tal que se viveu, a que poderia ter vivido, o que fiz e o que poderia ter feito (ou feito de outra maneira). Uma reflexão quem sabe desencadeada pela idade, a reforma, o meu longo percurso de vida e de escrita. Qual o sentido de tudo? É uma pergunta pessoal, mas também geracional: a das nossas ilusões, das batalhas que travamos.
Foi um confinamento criativo?
Neste sentido, sim. Nunca deixei de escrever, preparei um livro sobre a Amália, que já foi publicado. Mas de repente dei por mim com o caderno quadriculado onde escrevo sempre à mão. A certa altura, percebi que não estava a escrever poemas, mas um único poema, uma espécie de peregrinação interior, para usar o termo do Alçada Baptista. Um poema ligado à vida, porque não acredito em poetas sem História ou geografia, como aliás defendia João Cabral de Melo Neto. O presente, hoje, parece bloqueado, sem horizonte passado, nem perspetiva de futuro. É muito perturbador.
Antes de irmos ao presente, acompanhemos esta viagem pela sua vida. Nela, a palavra fronteira parece ser uma das mais importantes.
E é, em dois sentidos. As fronteiras físicas que tive de atravessar para o exílio. Nesses momentos, uma pessoa fica dividida. Uma parte de nós fica cá, a outra vai e nunca mais volta. Vi-me forçado a atravessar muitas, mas sem nunca perder a fidelidade à raiz. Mas também houve fronteiras metafóricas, vivenciais e literárias, outras políticas. Nunca fiquei agarrado a nenhuma. E este tempo que estamos a viver também é uma fronteira fechada.
Com este livro cruza também algumas fronteiras da sua obra?
Neste livro está toda a minha experiência de escrita, mas também ritmos novos, outra toada, algumas ousadias, como quando recrio os diálogos que ouço no jardim público, convocando novamente a rua para a poesia. Talvez seja mais um começo, ou recomeço, do que um fim, o que até a mim me assarapantou. Deixei-me ir, sem medo de qualquer limite.
Nos dias que correm é ainda mais imperioso atravessar fronteiras?
É sobretudo preciso não ter baias, incluindo as do politicamente correto. É também por isso que deixo tantas interrogações sobre a poesia no fim do livro. Osip Mandelstam dizia: “A poesia é o poder”. E, no entanto, morreu num campo de concentração. É irónico e trágico pensar que esse verso o condenou. Ainda assim, a frase ficou, a sua poesia ficou. E quem o condenou? Estaline e o estalinismo acabaram. A poesia não é um poder capaz de imediatamente derrubar os poderes tirânicos, mas tem dentro de si um contrapoder absoluto, que no fim vence de outra maneira.
Diz da poesia, neste livro, que é a última conjura. Em que sentido?
Vivemos um tempo que já não é de revolução. Pelo contrário, avança-se na desconstrução da democracia, uma verdadeira contrarrevolução. Neste contexto, a libertação da palavra poética pode vir a ser uma das últimas formas de resistência. O que se pode fazer em tempos de indigência?, perguntava Hölderlin. É libertarmo-nos de fronteiras, nomeadamente as que estão dentro de nós próprios e as que nos amarram e impedem a escrita de se tornar o sopro que conduz ao poema o vento de liberdade de que somos feitos.
Do livro fica, contudo, um certo ceticismo. A palavra perdeu força?
Perdeu. Lembro-me da crença que tinha quando escrevi Praça da Canção ou O Canto e as Armas. A minha geração sentia que a palavra tinha uma força libertadora. E teve. Aqueles poemas, mesmo apreendidos, circularam em cópias clandestinas. E foram cantados. E tiveram consequências, coisa que perturba aí alguns dos papas da crítica e do comité central da poesia. Ajudaram a mudar a vida, quem sabe também um pouco o país. Hoje isso talvez seja mais difícil, com a globalização e o poder financeiro que tudo domina, inclusive a Cultura. Mas ultimamente também vejo muita poesia ensimesmada, mais preocupada em mudar a linguagem do que, através da linguagem, mudar a vida.
A poesia perdeu a ponte entre o eu e o nós?
De certa forma, sim. E essa ponte tem sido a minha vivência, a minha escrita. Penso que ainda sou culpado de ter leitores. Porque o que parece bom é os poetas não serem lidos.
Escreve-se para ser lido?
Também para ser lido, claro. Para ser ouvido e partilhado, uma das minhas culpas. Quando escrevo tenho sempre a aspiração de encontrar um leitor, muitos leitores. Ou, como dizia o poeta José Terra, que um dia alguém “tropece num verso meu”.
Tem procurado também captar “a música do mundo”, mas à sua janela parecem chegar sons, hoje, muito diferentes. O que se passa?
Não me posso queixar, vivo na Praça João do Rio, em Lisboa, onde ainda é possível ouvir os pássaros, mesmo com o surgimento de espécies exógenas que andam a afastar os melros. Mas este é um tempo de muitas obras, dentro de casa e nas ruas, a cidade parece um estaleiro. O ruído harmonioso da cidade, aquele que se lia em alguns autores portugueses, perdeu-se. Foi substituído por um som constante e perturbador. E quem perde essa música, perde a poesia, a capacidade de cantar. Ela não desapareceu, apenas é preciso encontrar outras formas de a captar.
É uma mudança sem destino?
Sim, vivemos tempos frenéticos. É a obra pela obra, mudar tudo, deitar abaixo, um novo-riquismo feito de muitas formas. E metaforicamente também associo a um inferno que nem Dante, no poema dos poemas, a sua Divina Comédia, experimentou. Um martelo mecânico é o inferno dos infernos.
Rima bem com o som dos telemóveis, a que também alude?…
Ambos sublinham a incomunicação. Hoje, toda a gente clica e posta e fala uma língua estranha, angloamericana, que reclama sistematicamente um dicionário. E, no entanto, fala-se pouco. É como as petições, que por aí abundam. Antigamente ia-se para a rua, ou conspirava-se, procurava-se um sentido mais amplo da comunidade e do coletivo. Pouco mais sobra do que a espuma dos dias.
No seu poema, os tweets surgem ao lado das tabuinhas sumérias, os primeiros, tão atuais, apagam-se em poucos minutos, as segundas, tão simples, apenas argila seca ao sol, ainda permanecem. É deste lado que deve estar a poesia?
É. Por vezes, nessas tabuinhas, encontramos um tempo antigo que nos parece tão atual, como a frase que cito: “Ontem não te vi em Babilónia”, já usada também pelo Lobo Antunes. É uma frase terrível, incrível. Eu sei já que não sou deste mundo, mas acho que a poesia não deve recusar os novos meios. É outra forma de partilhar ideias.
O seu poema Lisboa Ainda, escrito e partilhado nas redes sociais durante a quarentena, chegou a quase 900 mil pessoas, segundo dados divulgados pela sua editora.
Foi ao encontro do que estava dentro das pessoas. Acabei por ser eu a expressá-lo. É um poema muito diferente deste Quando, mas partiu do mesmo estado de espírito.
Em Quando, regressa à Guerra Colonial. Nunca se sai dela?
“Há guerras que não acabam nunca”, dizia o René Char, poeta que também foi capitão de guerrilha. Eu vi isso nos meus amigos, que em algum casos ficaram presos naquele tempo. Eu vivi a guerra, escrevi-lhe poemas, mas libertei-me. Não me arrependo dessa experiência. Gostei da camaradagem e da fraternidade e até das provações a que fui sujeito. Acho que fui um bom comandante e que os meus homens tinham confiança em mim. Isso contribuiu em grande parte para me libertar dos meus traumas. Volto lá de vez em quando, neste poema também, mas mais numa abordagem geracional, pelo impacto que teve. Não durmo com a guerra, nem a trago dentro de mim. Talvez por ter tido outras partidas pelo mundo, outras experiências, igualmente intensas.
Concorda com quem tem associado a pandemia a uma guerra?
Isto é muito pior. O inimigo parece estar em todo o lado, pode até estar em nós sem que o saibamos. É uma tragédia inimaginável. Toca ao planeta todo, com consequências ainda por apurar. Uma pandemia como esta fecha a vida e o tempo.
É o que apresenta como um corte com a memória.
Exato. Uma coisa é pensar criticamente o passado, que é urgente, outra é esta rutura agressiva com os mais idosos, que esta pandemia veio reforçar. Infelizmente, não é de agora. No Maio de 68, e é um dos episódios que recordo no livro, assisti a uma assembleia de estudantes no Quartier Latin, em Paris. E a certa altura um comunista queria falar mas toda a gente começou a assobiá-lo. E ele disse: “Mas eu sou um herói da resistência, da guerra de 1939-1945. “Estamo-nos nas tintas”, responderam-lhe. Aqui é o mesmo. Se formos falar de alguns assuntos da nossa História, mesmo da mais recente, tenho a sensação que muita gente dirá que também não está para aí virada. É um corte muito perigoso. A luta pelo poder, como lembra Kundera, trava-se entre a memória e o esquecimento. Quando a segunda ganha a liberdade está sob ataque.
Com tudo o que tem dito, será Quando um gesto político?
Já não tenho essa ilusão. É uma preocupação, uma indignação, uma revolta que se exprime poeticamente. É também por isso que este Quando não leva no fim um ponto de interrogação. Apenas interpela o passado, o presente, o futuro.
O que o revolta?
A pandemia deve conduzir a um maior despertar para as transformações do planeta. Porque realmente isto tem limites. A Terra não acabará, mas se nada for feito acaba a vida humana. Pululam Trumps por todo o mundo, colocando o dinheiro acima dos destinos da Humanidade. Novas respostas têm de ser encontradas, sem dogmatismos, nem radicalismos ideológicos. Sem ilusões.
O discurso ecológico é prioritário?
Os jovens têm toda a razão, porque é a vida deles (incluindo a dos meus netos) que está em causa. A indiferença e a soberba dos reacionários perante essas questões indigna-me e revolta-me. Estamos dispostos a liquidar a vida na terra apenas para que se mantenha um certo modo de estar e a supremacia de uns perante os outros.
Gosta do ativismo da Greta Thunberg? Ela tem recorrido aos meios tradicionais, como a greve, o que não deixa de ser curioso.
É verdade. Compreendo-a cada vez melhor. Confesso – mea culpa – que de início me irritou um pouco. Temi que fosse uma moda, mas felizmente foi mais. Às vezes, para sermos ouvidos, é preciso exagerar, voltar às formas antigas de luta e acreditar que a nossa mensagem pode falar a todas as pessoas. Essa é a sua grande força. Hoje, só tenho de lhe agradecer, porque despertou o mundo para a causa do futuro.
No início da entrevista apresentou-se como “reformado”. Chegados aqui ninguém acredita.
Fui-me desintervencionando, para usar uma palavra absurda. Acompanho a atualidade de outra maneira. E o que mais me mobiliza, hoje, são as eleições americanas. Tivemos ao longo do século XX grande heróis e figuras, mas quem trava o combate cívico decisivo, o mais importante desde o fim da II Guerra Mundial, não é um génio, será talvez um homem mediano, é Joe Biden. O combate é heroico porque do seu sucesso depende muito do destino da América e do mundo.
A mentira está a triunfar?
Novamente. A mentira é uma arma de poder. É assim desde a antiguidade e tivemos muitas experiências, incluindo recentemente em Portugal, durante a ditadura. Hoje talvez esteja reforçada com os novos meios, a Internet e as redes sociais. Falta saber se as instituições são suficientemente fortes para resistir.
As de Portugal são?
O nosso país não é uma ilha e era inevitável que as estratégias demagógicas também aqui chegassem. Acredito, no entanto, que o sistema democrático tem força suficiente para conter esta ameaça.
Entrevista publicada no JL 1307, de 4 de novembro de 2020.