E o prémio vai para…
Na verdade, emergindo da conjuntura, esses destaques são sinais estimulantes da leitura, mas esta realiza longa depuração: quantas obras tendem a ser esquecidas depois da celebradas aquando a sua publicação?…
Na galeria da Vida Literária (Prémio Vida Literária/APE- CGD), entre 1993 e 2016, desfilam nomes que acenderam pontos luminosos na nossa cartografia das Letras: Miguel Torga, José Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Óscar Lopes, José Cardoso Pires, Eugénio de Andrade, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Cesariny de Vasconcelos, Vítor Aguiar e Silva, Maria Helena da Rocha Pereira, João Rui de Sousa e Maria Velho da Costa e Manuel Alegre. Mas a lista, como todas, não é nem poderia ser fechada, pois bastaria pensar em personalidades como António José Saraiva (f. 1993), autor que atravessou, com clarividente lição, a cultura portuguesa (O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, 1990, A Tertúlia Ocidental: Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros, 1991), ou José Mattoso, que nos fez repensar a identidade nacional (Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, 1985, A Identidade Nacional, 1998), demonstrando também que uma biografia pode ser o lugar de uma brilhante lição de como fazer História (D. Afonso Henriques, 2006), ou Eduardo Lourenço, mestre de gerações perdidas no seu O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português (1978) feito Nau de Ícaro (1999) ou dos Loucos (Hieronymus Bosch) em busca de uma Europa desorientada, vogando em Cultura Líquida (Zigmunt Bauman) ao ritmo das ‘revisões da matéria’ de autores que, como Miguel Real, lhe redesenha o imaginário (Portugal: Ser e Representação, 1998, O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010 – O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, 2011) em Novas Teorias (do Mal: Ensaio de Biopolítica, 2012, da Felicidade, 2013, do Sebastianismo, 2014) até que ele se suspende (Portugal: Um País Parado no meio do Caminho (2000-2015), 2015) em disfórico fim de ciclo (O Último Europeu: 2284, 2015). Uma narrativa possível em 2015, ano em que Bill Gates previu o perigo de uma pandemia numa conferência do projeto TED Talks, reforçando e recordando a previsão do relatório Global Trends 2015: A Dialogue About the Future With Non government Experts (Tendências Globais 2015: Um Diálogo Sobre o Futuro com Especialistas Não-Governamentais, Dez/2000) do National Intelligence Council, previsão agudizada no Global Trends 2020 (2004), pandemia abolindo fronteiras e mostrando a fragilidade do mundo globalizado…
Façamos um itinerário pelo tempo de vida do nosso JL, cujo aniversário celebramos, sem a preocupação de lhe correr os índices de um trabalho ciclópico de crónica das novas décadas das Letras, das Artes e Ideias portuguesas (não as da Ásia, de João de Barros). Sigamos a cronologia, assinalando nela núcleos temáticos de peças em diálogo.
Se 1981 foi o ano de nascimento, deixemo-lo brilhar a solo… JL.
Essa década oferece-nos a revisitação a um Portugal anterior ao 25 de Abril: Memorial do Convento (1982), de José Saramago, nosso futuro Nobel, e Balada da Praia dos Cães (1982), de José Cardoso Pires, levado ao cinema por José Fonseca e Costa (1987), estendendo o olhar pela diáspora com Gente Feliz com Lágrimas (1988), de João de Melo. Ao lado, revolucionando o registo ensaístico, Abel Barros Baptista relê um dos nossos clássicos oitocentistas: O professor e o cemitério: rusga pelo “José Matias” de Eça de Queiroz entendido como percurso de assassinatos regulares (1982). Aceitando que a década se encerra com 1990 (eterno debate sobre o início e o final de década, século, etc.), os Sonetos Românticos (1990), de Natália Correia, convocam a fortíssima tradição da lírica nacional onde brilham os nomes de camões, Bocage, Antero… Ensaio ficção e poesia em regresso ao passado.
A década seguinte tem uma espécie de Janus a meio olhando em diferentes sentidos: para a arte em processo e as origens míticas da portugalidade cuja diversa configuração Mário Cláudio conclui com a última obra da sua Trilogia da Mão (Amadeu, 1984, Guilhermina, 1986, e Rosa, 1993), e para uma reflexão existencial, como a ficcional de Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), de Mário de Carvalho, ou a poética de Meditação sobre ruínas (1994), de Nuno Júdice. E abre-se em flor de agonia no final, convocando o expressionismo (Munch) em Grito (1997), de Rui Nunes, e o grande mito moderno que fantasmiza a Europa: Fausto, de J. W. Goethe, na premiada tradução de João Barrento (1998).
A primeira década do séc. XXI abre com a ficção sob o signo da nova Física: a trilogia O princípio da Incerteza (Jóia de família, 2001, A alma dos ricos, 2002, e Os espaços em branco, 2003), de Agustina Bessa-Luís. Corresponde-lhe um olhar reflexivo dos géneros ao espelho de si mesmos no enquadramento de grande angular (História do Pensamento Estético em Portugal, 2009, de Fernando Guimarães): Uma questão de ouvido: ensaios de retórica e interpretação literária (2004), de Maria Lúcia Lepecki, Diário Quase Completo (2007), João Bigotte Chorão, O Género Intranquilo: Anatomia do Ensaio e do Fragmento (2010), João Barrento.
Com os clássicos em pano de fundo entre a épica e a tragédia (Odisseia, de Homero, na tradução de Frederico Lourenço, 2003, e o ensaio Pensar o Trágico, 2006, de José Pedro Serra), erguem-se, sucessivamente, representações de Portugal com a morte ao fundo, identificando indivíduo e comunidade: Portugal Hoje. O Medo de Existir (2004), de José Gil, A cova do lagarto (2007), de Filomena Marrona Beja, e O Último Minuto na Vida de S. (2007) e A Morte de Portugal (2007), de Miguel Real.
Dobrando a década, regressam os velhos mitos identitários, mas tornados matéria estética, cena de visitação paródica a que Tiago Veiga (2011), de Mário Cláudio dá o mote: Uma Viagem à Índia (2010), de Gonçalo M. Tavares, e A Cidade de Ulisses (2011), de Teolinda Gersão. A viagem e o mundo, no mundo, na imaginação, na escrita. José Mattoso procurará Levantar o Céu, percorrendo Os Labirintos da Sabedoria (2012) e Eugénio Lisboa, faz das suas memórias as de uma comunidade em diáspora por diferentes palcos do mundo (Acta Est Fabula, 2012-17, 6 vols.).
E as décadas parecem conduzir, inevitavelmente, pelos Degraus dos Parnaso (título do belíssimo livro de ensaios de M. S. Lourenço publicado em 1991), a uma apoteose e celebração pela letra ensaística desse inigualável scholar que é Onésimo Teotónio de Almeida: O Século dos Prodígios – A Ciência no Portugal da Expansão (2018), premiado pela Gulbenkian, pela Academia Portuguesa de História pelo Solar Casa de Mateus e pela Sociedade Portuguesa de Autores.
Se esta narrativa é possível, não deixa de ser conjuntural, pois poderia conceber outra…