1 Num texto publicado neste jornal há mais de dez anos, lancei estas perguntas: e se, de repente, nos cruzássemos na rua com Emma Bovary? Ou, num bar, nos sentássemos na mesa ao lado do engenheiro Tomás Manuel da Palma Bravo? Ou ainda: e se uma mulher se nos revelasse como sendo Blimunda?
As perguntas parecem absurdas, mas não o são tanto; por outro lado, elas parecem ignorar as diferenças (as fronteiras) que o senso comum atribui às personagens de ficção, quando comparadas com as pessoas que somos ou que supomos ser. Digo “supomos ser” lembrado, como estou, daquilo que em Fernando Pessoa era mais do que uma boutade, quando afirmava, na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro: “Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos).”
2 Formulo estas especificações no início de uma série de textos em que me junto à celebração dos 40 anos do JL, jornal de letras, artes e ideias. Exatamente porque a personagem tem presença certa num jornal de letras, proponho-me evocar, nas próximas edições, 40 personagens da ficção portuguesa. Não necessariamente as melhores, mas as minhas 40 personagens.
Tentarei não as isolar das histórias em que vivem a sua vida imaginária; procurarei, isso sim, sublinhar a sua identidade, a sua autonomia relativa e os vários sentidos – sociais, axiológicos, históricos, etc. – que lhes estão associados.
Ao mesmo tempo, convocarei alguma coisa do que tem sido o desenvolvimento de um Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa (em versão online: http://dp.uc.pt/), obra coletiva em que se funda muito do que aqui é dito.
3 Um dos castings mais ajustados que uma personagem de Eça de Queirós já conheceu, foi o que permitiu à grande atriz brasileira Marília Pêra dar corpo à Juliana d’O Primo Basílio, na adaptação do romance à TV (minissérie da Globo, realizada em 1988, por Daniel Filho). Tarefa complexa, desde logo, porque em Juliana modelou Eça não apenas uma parte significativa do seu pensamento social dos anos 70, mas também aquele feixe de contradições de que são feitas as grandes personagens.
Recordo: Juliana é uma figura antipática, fisicamente quase grotesca, de temperamento azedo e ressentido. Ela é “a criada, em revolta secreta contra a sua condição, ávida de desforra”, conforme Eça se lhe referiu, na conhecida carta a Teófilo Braga, de 12 de março de 1878. Recordo o que se diz de Juliana, no breve retrato em que ela é apresentada: “Devia ter 40 anos, era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho” (O Primo Basílio, cap. I).
A isto segue-se uma extensa caracterização com a carga das notações sociais e psicológicas que geram as ambivalências a que aludi: a tensão surda com os amos, a frustração sexual, a opressão sofrida ao longo de anos, o desejo de libertação e o mais que gera, em relação à personagem, uma relação (nossa, enquanto leitores) de atração-rejeição. Em síntese: “Registando a natureza perversa, a maldade e o ódio transbordante da sua personagem, este narrador não nos deixa esquecer, contudo, que ela é simples peça de um duro jogo de poderes. No âmbito desse jogo, recai sobre os patrões a ameaça de privacidade destruída; já a criada é atingida pela precariedade social da sua condição.” (Maria do Rosário Cunha, em “Juliana”, Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa; http://dp.uc.pt/conteudos/ entradas-dodicionario/item/211-juliana).
4Para todos os efeitos, Juliana “contracena” com Luísa, numa evidente relação protagonista-antagonista. Ao mesmo tempo, Luísa provém de uma outra forma de olhar a personagem feminina, numa ficção que não idealizava a mulher, antes a representava como aquilo que, para o pensamento masculino dominante, ela representava. Segundo Eça, na tal carta a Teófilo Braga, Luísa era “a burguesinha da Baixa”: “A senhora sentimental, mal educada, nem espiritual (porque Cristianismo já o não tem, sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobre-excitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e de disciplina moral”.
Repare-se: “arrasada de romance”. Numa breve expressão, o grande romancista põe o dedo numa relativa novidade sociocultural que o seu relato evidenciava. Trazida à leitura por fatores diversos – a tal ociosidade não seria o menor dentre eles -, Luísa configura comportamentos previsíveis, no quadro de uma lógica naturalista que Machado de Assis severamente criticou – e em parte com razão. Sem ser uma grande personagem, a Luisinha que “era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho” (cap. I) é, afinal, descendente de Emma Bovary e parente próxima de Ana Ozores de La Regenta e de outras mais, afirmando-se num contexto mental e cultural que fazia derivar a figura feminina para a condição de estereótipo.
5É também num quadro naturalista que as duas personagens centrais d’O Crime do Padre Amaro, Amaro e Amélia, se cruzam, já com destinos traçados. O sacerdote traz consigo o estigma de uma origem psicofisiológica apresentada como doentia: filho de “uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma cor ardente” e de um pai que “tinha morrido de apoplexia”, Amaro não consegue escapar à imposição de um sacerdócio condenado ao fracasso. Porque não se trata, para ele, de uma escolha livre, mas de uma imposição da marquesa de Alegros: “Conservou-o em sua casa, por uma adoção tácita; e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação” (O Crime do Padre Amaro, cap. III).
Amaro é, então, uma personagem previsível e, nesse aspeto, não desmente as motivações deterministas a que Eça obedeceu. Não deixa, aliás, de serelucidativo o labor do escritor que, tardando em dar por acabado um relato escrito em três versões, foi atribuindo ao seu protagonista traços de um cinismo que culmina na famosa e quase final revelação do padre: “Já as não confesso senão casadas!” (cap. XXV).
Antes disso e quando se envolveu com o padre, Amélia não era casada, apenas uma devota envolta na opressiva atmosfera beata que grassava numa cidade de província, na segunda metade do século XIX. Sem ter obviamente lido o Syllabus e mal sabendo, por certo, quem era Pio IX, a jovem vivia à sombra da
Sé de Leiria, esmagada por uma vivência religiosa que ignorava o livre arbítrio, sendo o padre substituto de Deus. “O bom católico”, explicava o dr. Gouveia, “não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela.” Assim era com Amélia; como tal, restava-lhe aceitar o assédio do padre como procedimento justificado e até bem acolhido por uma sensualidade que a religiosidade, em certos aspetos, estimulava.
E contudo, Amélia revela-se-nos uma personagem dotada de alguma densidade psicológica e não apenas pelas frequentes alterações de humor por que passa, ao longo do romance. Em todo o capítulo III d’O Crime do Padre Amaro, é o registo da memória que, numa noite de insónia, traz à cena da ficção rotinas e comportamentos que ajudam a explicar uma decadência moral que era o foco de atenção do Eça das Conferências do Casino e d’As Farpas. Pela via daquela densidade psicológica e sem propriamente “trair” as preocupações “de escola” a que estava ligada, a personagem queirosiana começava a trilhar caminhos novos.
6 É muito extensa e muito sugestiva a galeria das personagens queirosianas, o que está bem atestado pela rica iconografia que elas inspiraram; lembro, a este propósito e entre outros, os nomes de Alberto de Sousa, de Bernardo Marques, de Wladimir Alves de Souza, de João Abel Manta ou de António e ainda, noutro plano, o de Paula Rego.
É claro, entretanto, que as personagens de Eça não estão sós; elas convivem, no seu tempo ou mais alargadamente no século XIX, com outras figuras, sendo uma fração das 40 a que me limitarei,
as daquele tempo e as do século XX. Por isso, voltarei aqui.
Com outras personagens e com quem as criou.