Na manhã de sete de Abril de 1991, quando o meu pai telefonou para me convidar, pela primeira vez, para o seu apartamento em Chapinero, caíra sobre Bogotá tamanha chuvada que os riachos dos Cerros Orientales transbordaram e a água desceu, revoltosa, arrastando galhos e terra, entupindo sarjetas, inundando as ruas mais estreitas e revirando os carros mais pequenos com a força da corrente, chegando inclusivamente a matar uma taxista desprevenida, que ficou presa, em circunstâncias não esclarecidas, debaixo do chassi do próprio táxi. O telefonema era, no mínimo, surpreendente; esse dia, no entanto, pareceu-me logo agoirento, não só porque o meu pai deixara de receber visitas há muito tempo, mas também porque a imagem da cidade sitiada pela água, das filas de carros parados e dos semáforos avariados, das ambulâncias presas e das emergências a que ninguém acudia deveria bastar, em circunstâncias normais, para convencer o meu pai de que fazer-lhe uma visita seria insensato; pedir que alguém fizesse essa visita era algo quase perigoso. A imagem de uma Bogotá abandonada fez-me entender a sua urgência e suspeitar que o convite não era uma questão de cortesia, sugerindo-me antes uma dedução temporária: íamos falar de livros. Não de qualquer livro, claro: falaríamos do único livro publicado por mim até essa data, uma reportagem com título de documentário para a televisão — Uma Vida no Exílio, assim se chamava —, que contava, ou tentava contar, a vida de Sara Guterman, filha de uma família judia que era amiga da nossa família desde que, nos anos trinta, tinha chegado à Colômbia. No momento da sua publicação, em 1988, o livro tivera alguma notoriedade, não tanto pelo tema, ou pela sua qualidade discutível, mas porque o meu pai, um professor de Oratória que sempre recusara aproximar-se de qualquer forma de jornalismo, um leitor de clássicos que não apreciava comentar a literatura na imprensa, tinha publicado, no Magazín Dominical, uma crítica que destruía o livro com fúria. Percebe-se por isso que, quando o meu pai fez um mau negócio ao vender a casa de família, alugando depois o seu refúgio de falso solteiro empedernido, eu não tenha estranhado saber da sua crítica por portas e travessas, ainda que tenha sido Sara Guterman — ou seja, a porta mais próxima da minha vida — a responsável por pôr-me a par do texto.
De forma que a coisa mais natural do mundo, na tarde em que o fui visitar, era pensar que ele queria falar disso mesmo: que iria corrigir, com três anos de atraso, essa sua traição mínima e doméstica, sim, mas nem por isso menos dolorosa. O que aconteceu foi muito diferente. Na poltrona autoritária e amarela, enquanto mudava de canal com o polegar solitário da sua mão mutilada, este homem envelhecido e assustado e que cheirava a lençóis sujos, cuja respiração assobiava como um papagaio de papel, contou-me, no mesmo tom que usara durante toda a vida para repetir uma história sobre Demóstenes ou Gaitán, que havia três semanas que visitava regularmente um médico da clínica San Pedro Claver, e que uma inspecção ao seu corpo de sessenta e sete anos revelara, por ordem cronológica, diabetes sem gravidade, uma artéria obstruída — a anterior descendente — e a necessidade de uma operação imediata. Agora o meu pai sabia quão próximo estava de deixar de existir, e queria que eu também o soubesse. — Eu sou tudo o que tens — disse-me. — Eu sou tudo o que te resta. A tua mãe está enterrada há quinze anos. Podia não ter telefonado, mas foi o que fiz. Sabes porquê? Porque depois de mim, estarás sozinho. Porque, se fosses um trapezista, eu seria a tua única rede. — Pois bem, agora que passou tempo suficiente desde a morte do meu pai e que decidi, por fim, organizar a minha cabeça e a minha escrivaninha, os meus documentos e as minhas notas para a redacção deste relato, pareceu-me evidente que deveria começar desta maneira: recordando o dia em que ele me telefonou, a meio do Inverno mais intenso da minha vida adulta, não para deter o afastamento em que embarcáramos, mas para se sentir menos sozinho quando lhe abrissem o tórax com uma serra eléctrica e lhe cosessem, no coração doente, uma veia extirpada da sua perna direita.