Foder, fodendo, fodilhão, prostituta, abade, sacristão. De que falamos? De poesia, pois claro, e da de outros tempos, com certeza. Quando o português e o galego viviam juntos, os versos iam direto ao assunto. Na Idade Média compunham-se cantigas de amigo e de amor, mas também de escárnio e de maldizer. Dentro destas, não faltavam, em bom número, as de cunho erótico, com versos sugestivos ou nem por isso. Uma antologia que agora chega às livrarias dá-nos, em português atual, uma visão panorâmica desta singular criação ibérica.
Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, uma edição da Guerra & Paz (192 pp, 15,50 euros), tem organização, tradução e prefácio de Victor Correia. “Nos últimos anos, têm sido feitas edições das cantigas de amigo e das cantigas de amor, umas em língua original, outras traduzidas para português”, adianta, no prefácio, o professor e investigador, com formação nas áreas da Filosofia e Estética. “No entanto, as cantigas satíricas e principalmente os textos eróticos têm continuado na sombra”.
Colmatar essa falha é um dos objetivos deste volume, que também se propõe apresentar, a um público mais alargado, “uma herança cultural muito rica do nosso património literário”. À criação de uma antologia temática dedicada ao erotismo, junta-se a tradução para português atual destas composições escritas originalmente em galaico-português. Novas versões para novos leitores.
“A tradução de um texto literário é sempre uma interpretação, principalmente tratando-se de poesia e, sobretudo, de textos arcaicos, que recorrem por vezes a uma linguagem metafórica e cheia de equívocos”, adianta Victor Correia. “Em todo o caso, entre a métrica, a rima, e o conteúdo do verso, embora na generalidade desta tradução tivéssemos procurado manter a fidelidade a todos, em alguns casos tivemos de optar e, nesses, preferimos que o verso tivesse menos ou mais sílabas do que o original, mas que fosse preservado, tanto quanto possível, o conteúdo (a ideia) do verso”.
Chegaram até nós, em três cancioneiros (Biblioteca Nacional, Biblioteca da Ajuda e Biblioteca Vaticana), 1680 cantigas medievais de vários autores, trovadores ou nobres de Portugal, Galiza, Leão e Castela, incluindo o nosso rei D. Dinis. As de escárnio e maldizer constituem um quarto desse espólio. Com temas muito variados e “atuais”, garante Victor Correia, relatam os costumes e a mentalidade da Idade Média. Não poucas vezes aludem a uma pessoa em concreto. Nas composições eróticas, destacam-se as “subtilezas e os equívocos, os trocadilhos e as ambiguidades”.
No seu conjunto, estes poemas eróticos oferecem-nos um outro retrato de um período dominado pelo credo religioso. “Ao contrário da imagem idealizada que se tem sobre a Idade Média, ao ser considerada como uma época em que as pessoas só pensavam em assuntos religiosos, os cancioneiros medievais galego-portugueses destroem essa imagem, pois revelam que a Idade Média também era bastante profana, que na Idade Média também havia muito erotismo e, por vezes, até obscenidade”, afirma o antologiador.
Foder, fodendo, fodilhão, prostituta, abade e sacristão, pois então. É a verdadeira arte de dizer f****, que hoje está tão na moda na área da autoajuda. Mas aqui celebrava-se os prazeres da vida e do corpo. Ou, noutros casos, prolongava-se a fama de mulheres da rua, como uma tal de Maria Peres Balteira, célebre prostituta galega das cortes de Fernando III e Afonso X. Quem pregava, quer na barra civil, quer no adro da igreja, coisa diferente da que fazia em privado também não escapava aos duplos sentidos das expressões mais populares. Há muitos magistrados que gostavam de cavalgar, mas não em cavalos, e muitos abades que gozavam de longa descendência.
Entre o humor e a ironia, são composições que, ainda hoje, surpreendem. Como esta, de João Garcia de Guilhade, trovador ativo em Barcelos no século XIII:
Martim Jogral, mas que coisa
pois só convosco é que poisa
vossa mulher!
De desejo ando morrendo,
E vós deitado fodendo
vossa mulher!
Do meu mal não vos condoeis,
eu morro, mas vós fodeis
vossa mulher!
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