Teolinda Gersão já habituou os seus leitores a uma notável mestria de escrita, particularmente presente na construção de textos que fazem da brevidade e concisão uma arte de contar. É nessas narrativas, marcadas por subentendidos e não ditos que sugerem mais do que desvendam, que as qualidades de exímia artesã da palavra se revelam. Disso é exemplo o seu último livro, Atrás da Porta e Outras Histórias, que faz dos jogos verbais e semânticos um dos elementos estruturantes da efabulação. É no conto que dá título à obra(p. 27-37) que encontramos a ilustração perfeita do poder da palavra, da sua natureza polissémica, que identifica, mas também insinua, que afirma, mas também abre espaços para a dubiedade. O incipit coloca, desde logo, o leitor de sobreaviso ao inscrever no entrecho a dúvida e a incerteza: “É verdade que o letreiro na sua porta diz ‘Psiquiatra’, mas como vou saber se o senhor é realmente psiquiatra, ou finge ser?” (p. 27). É assim, numa constante alternância entre realidade e perceção, ilusão e loucura, que as personagens se movimentam, levando-nos em sombrias deambulações rememorativas e introspetivas.
Perpassa da leitura dos 14 contos que compõem o livro uma sensação de inquietude e desassossego, já antecipada por um curto e enigmático texto colocado em abertura das narrativas. Sem qualquer identificação titular, o leitor é interpelado por uma voz que o incita a não se deixar enredar por circunstâncias exteriores, a não permitir que esses fatores condicionem o curso da existência, a tomar em mãos a condução do seu destino, porque, como afirma, é em cada indivíduo que reside a capacidade de superar as adversidades e sair da escuridão, onde, como verificaremos na leitura dos contos, as diferentes personagens, por diferenciadas razões, parecem estar mergulhadas.
Em traços precisos e sóbrios, a autora dá-nos a descobrir os meandros de existências marcadas por angústias, temores, arrependimentos, dúvidas, estigmas, desilusões. A efabulação constrói-se sob o signo da pluralidade não só de entrechos (característica inerente ao género escolhido em que cada conto recria universos narrativos diferentes), mas sobretudo de vozes e focalizações. A diversidade e originalidade de pontos de vista a partir dos quais as realidades são observadas surpreende e interpela o leitor. Não se trata apenas de uma alteração da pessoa gramatical (numa oscilação tradicional entre a primeira e terceira pessoa), mas antes da grande diversidade de locus de enunciação, tão diversos quanto o espaço fechado e reservado do gabinete do psiquiatra do conto, já citado, “Atrás da porta” ou o espaço infinito e sideral de onde os narradores de “Nascer” (p. 39-43) e “Dona Branca e os prestidigitadores” (p. 109-123), em discurso de primeira pessoa, observam a vida que ocorre “lá em baixo” (p. 110), “no mundo inferior” (p. 39), como prefere chamar-lhe a personagem de “Nascer”.
O ponto de vista a partir do qual os narradores destes dois contos observam o mundo é de cima para baixo, lugar que lhes confere uma omnipresença e omnisciência, que num primeiro momento é percecionado como uma dádiva, para se revelar um infortúnio. Circunstâncias diversas e antagónicas os levaram para esse local, descrito no primeiro dos dois contos como um “lugar muito elevado e livre, onde o horizonte é praticamente infinito e é muito alto o nível de percepção que julgo ter” (p. 39). Enquanto em “Nascer” ouvimos a voz e os pensamentos da matéria que dará origem a um novo ser humano, em “Dona Branca e os prestidigitadores” a voz é a do espírito de D. Branca ou do ar (elemento em que se transformam os homens depois de morrerem ou antes de habitarem um corpo na versão da personagem de “Nascer”), que desse lugar sobranceiro e póstumo, recorda e julga as ações que praticou em vida, mas também analisa com muita atenção e uma lucidez que nunca antes experienciou os jogos de poder sobre os quais se alicerça a sociedade. Constata, desalentada, que “o dinheiro se tornou o maior dos problemas (…) muito poucos ganham, em segredo e sem riscos, somas descomunais, que depois milhões de pobres são obrigados a pagar” (p. 110), por isso apenas anseia regressar ao seu estado de mansa cegueira.
Ao longo dos contos, Teolinda Gersão convida os leitores a olhar para alguns dos grandes desafios colocados ao Homem, convocando para as suas narrativas a discussão de questões como os jogos de aparências e interesses sobre os quais se alicerçam as relações sociais, a ausência de ideários, o alheamento, as desigualdades sociais, a hipocrisia, movendo-se as personagens em espaços sombrios, onde a ilusão suplanta a realidade, onde “nada era o que parecia ser” (p. 81).
Atrás das Palavras de Teolinda Gersão
Teolinda Gersão já habituou os seus leitores a uma notável mestria de escrita, particularmente presente na construção de textos que fazem da brevidade e concisão uma arte de contar. É nessas narrativas, marcadas por subentendidos e não ditos que sugerem mais do que desvendam, que as qualidades de exímia artesã da palavra se revelam. Disso é exemplo o seu último livro, Atrás da Porta e Outras História
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