Feminista e ecologista, defensora dos animais e dos direitos LGBT+, Olga Tokarczuk (OT), 57 anos, é uma das mais jovens laureadas do Nobel de Literatura, anunciado no passado dia 10. E essa “juventude” talvez seja um dos sinais mais fortes que revela a escolha da Academia Sueca para o prémio de 2018. Tokarczuk é uma escritora do nosso e dos próximos tempos, uma autora combativa e original, convicta e enérgica, que o mundo literário (e não só) poderá agora conhecer melhor. E também perceber que o seu caminho, coerente e fulgurante, começou há muito. “Às vezes penso como teria sido a minha vida se os meus livros tivessem sido traduzidos mais cedo para inglês”, brincou no início deste ano em entrevista a The Guardian, referindo-se ao sucesso da sua obra no Reino Unido, vencedora do Man Book Internacional Prize em 2018, e finalista outra vez este ano, o que muito terá contribuído para este Nobel. A dimensão global, que então associava à língua de Shakespeare, já não lhe escapa.
O anúncio da Academia Sueca coincidiu com a campanha para as legislativas na Polónia e desencadeou acesa polémica. De um lado, celebrava-se o sexto Prémio Nobel da Literatura do país, depois de Henryk Sienkiewicz, em 1905, Wladyslaw Reymont, em 1924, Isaac B. Singer, em 1978, Czeslaw Milosz, em 1980, e Wislawa Szymborska, em 1996 – a que acrescem mais 13: quatro da Paz e da Física, dois da Química e da Medicina e um na Economia. Do outro, reavivavam-se declarações antigas de OT, denunciando a cumplicidade da Polónia com a perseguição nazi dos judeus, durante a II Guerra Mundial, mesmo contando com a asfixiante ocupação alemã. O PiS, partido nacionalista, que ganhou as eleições, embora sem maioria na câmara alta, liderou os ataques. “O prémio veio para a Europa de Leste, o que é raro, incrível. Para mim, como polaca, mostra que apesar de todos os problemas com a democracia no meu país, ainda temos algo a dizer ao mundo”, comentou a escritora.
Antes, no entanto, a sua primeira reação foi mais pessoal e emotiva. Depois da catadupa de telefonemas e felicitações, escreveu um pequeno texto, depois divulgado pelas suas editoras de todo o mundo: “Soube que venci o Prémio Nobel nas circunstâncias mais estranhas – na autoestrada, algures ‘a meio’, num lugar sem nome”, começa por dizer Olga Tokarczuk. “Não consigo pensar numa metáfora melhor para descrever o mundo em que vivemos. Atualmente, nós os escritores confrontamo-nos com desafios cada vez mais improváveis e, no entanto, a literatura é uma arte de movimento lento – o longo processo de escrita torna difícil apanhar o mundo ‘em flagrante’. Muitas vezes questiono se é sequer possível descrever o mundo, ou se já somos demasiado impotentes perante a sua forma cada vez mais fluída, a dissolução de pontos fixos e o desaparecimento de valores.” Perante este contexto, a sua crença, porém, não diminuiu. “Acredito numa literatura capaz de unir as pessoas e mostrar o quão semelhantes somos, que nos torna conscientes do facto de estarmos ligados por fios invisíveis. Que conta a história do mundo como se este fosse um todo vivo e uno, desenvolvendo-se de forma constante à frente dos nossos olhos, e no qual nós temos um pequeno, mas poderoso papel.”
A declaração termina com felicitações a Peter Handke, declarando-se feliz por ambos virem da “mesma parte do mundo”. Essa foi, aliás, uma das grandes surpresas deste ano. Além do anúncio simultâneo de dois vencedores, devido à suspensão do ano passado, motivada pelos escândalos de abuso sexual e apostas ilegais que envolveram Jean-Claude Arnault, marido da ex-porta voz da Academia, o prémio foi para dois europeus. As previsões eram de uma opção menos “eurocêntrica” e inglesa. Só metade se cumpriu. No caso de OT, o júri destacou a “imaginação narrativa” de uma obra que “representa a travessia de fronteiras como uma forma de vida”. Os dois livros publicados em Portugal, ambos pela Cavalo de Ferro, Viagens e Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, reforçam esta descrição.
Da macro à micro-história
Nascida em 1962, OT cresceu na pequena cidade de Sulechów, não muito longe da fronteira com a Alemanha (então de Leste). Filha de professores, viveu os tempos da cortina de ferro, do comunismo e da guerra fria, mas também do punk e da lenta abertura. Formou-se em Psicologia, na Un. de Varsóvia, nos anos 80. Chegou a exercer atividade clínica, por pouco tempo. O seu caminho seria o da escrita. E da deambulação. Viagens, que a revelou à escala global, incluindo em Portugal, é a síntese desse espírito inquieto, um manifesto do espírito errante. Mistura de memórias, micro-histórias e apontamentos sobre antropologia e anatomia, é tentador encontrar nele um retrato fiel da própria autora: “Não trabalhei muito tempo na minha área de formação. Durante uma das minhas viagens, em que me encontrei sem dinheiro numa grande cidade e tive de trabalhar como camareira, comecei a escrever um livro. Era uma narrativa para ler em viagem, num comboio, escrito como se fosse para mim. Um livro do tipo snack para comer de uma só vez, sem mastigar”. A tendência para obras inclassificáveis, talvez a sua marca mais forte, é tão antiga quanto a escrita. Mas esta revelou-lhe ainda uma outra dimensão: “A mim, a vida escapava-se-me sempre por entre os dedos”, escreve em Viagens. “Só me deparava com os seus vestígios, com a sua pele descartada. Quando, por fim, estava prestes a localizar a sua posição, ela já estava noutro lugar e eu encontrava apenas sinais da sua passagem, tal como aquelas inscrições gravadas na casa das árvores dos parques: ‘Estive aqui’. Na minha escrita, a vida transformava-se em histórias incompletas, relatos oníricos, enredos confusos; aparecia à distância em perspetivas invulgares e diferidas, ou em cortes transversais e, por conseguinte, era difícil tirar conclusões relativamente à totalidade”. Por ínvios caminhos, encontrara um estilo, uma voz, um olhar, uma forma de se apropriar literariamente da sua insaciável curiosidade e de a trabalhar, no texto, com total liberdade.
Primeiro, na poesia, em experiência única. Miasta w lustrach (Cidade em espelho) foi publicado ainda na década de 80, em 1989. Seguiu-se a sua estreia no romance, com Podróż ludzi księgi (A viagem das Pessoas-Livros), em 1993, que já era um manifesto, tal como outros livros, incluindo Viagens e Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, também serão. Passa-se no século XVII, em França, e tem como protagonistas dois amantes numa demanda pela vida, pelo amor, por um livro. O seu primeiro grande sucesso chegou em 1996, com Prawiek i inne czasy (Primitivo e Outros Tempos, sendo que Primitivo é também o nome da cidade imaginária). É um romance que acompanha diversas personagens excêntricas, representativas da história recente da Polónia. Assinala ainda a transição para um registo mais livre, muitas vezes composto por fragmentos ou micro-histórias interligadas.
Com dúzia e meia de títulos publicados, OT foi acumulando prémios. Na Polónia, recebeu, com Viagens, o Nike, o mais importante do país, que voltou a receber, em 2014, com Księgi Jakubowe (O Livro de Jacob), com mil páginas. Relata uma busca geográfica e temporal pelos impérios Otomano e dos Habsburgo no rasto de uma figura enigmática, Jacob Frank, judeu e líder de um grupo envolto em mistério e práticas heréticas. Muita da antipatia do partido no governo na Polónia advém deste romance, já publicado em francês e outros idiomas, incluindo o sueco, mas não o inglês. Além do já referido Man Booker Prize, foi distinguida ainda na Alemanha, na Suécia (em 2015), na Eslovénia e em França, entre outros países.
Pensar o mundo
Em Portugal, depois de Viagens, a Cavalo de Ferro lançou, logo após o anúncio do Nobel de Literatura, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de 2009. Lido a seguir a Viagens, este romance apresenta outra faceta da sua escrita. Numa narrativa aparentemente convencional, OT afirma as suas convicções políticas e sociais. Decorre numa pequena cidade junto à fronteira com a República Checa, onde uma mulher, a protagonista, Janina de seu nome, não se conforma com a violência a que os animais são sujeitos. Noutras vidas, ela foi engenheira com algum sucesso, carreira que deixou para se dedicar ao ensino do inglês. Mas também neste campo os seus métodos causam algum incómodo. Mais simples é dar nome às coisas, usando apenas a intuição, e cuidar da casa dos vizinhos, na cidade durante o inverno. Nessas caminhadas depara-se com um, dois, três, quatro mortos.
Na sua estrutura, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos é um policial de pequena comunidade, que depressa se assume como comédia negra ou farsa de costumes (bem atuais, por sinal). Tanto se brinca com os fundos da União Europeia, como se caracteriza a vida solitária de quem escolheu viver no campo. Tanto se denunciam os pequenos poderes, como se mostra que atrás de um rosto fechado se pode esconder um coração quente. Mais direta é a denúncia da visão utilitarista da vida, que arruma tudo em função do interesse e do lucro. Quem se interessará pelas larvas que vivem nas árvores quando a madeira pode render bom dinheiro?
Ao elogiar o inútil, Olga Tokarczuk está também a afirmar o seu campo literário, aquele que se enche de pormenores, insignificâncias, desperdícios, essa matéria que, ao fim e ao cabo, revela o verdadeiro rosto da vida. Amante da história e da ciência, da antropologia e da biologia, da fauna e da flora, da flor e do fruto, faz da sua prosa uma máquina de pensar o mundo. Em movimento ou em pequena escala, sempre universal.